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Daniel de Jesus Oliveira

Licenciado em Letras Língua Portuguesa e Literaturas – UNEB (Universidade do Estado da Bahia); Especialista em Língua Portuguesa: oralidade e escrita – UNOESTE (Universidade do Oeste Paulista); pós-graduando em Mídias na Educação – UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia).E-mail: djo-1992@hotmail.com.

 

 

 

Resumo: Neste artigo se tem por objetivo aplicar os pressupostos teóricos da Análise de Discurso de linha francesa, que tem como seu principal expoente Michel Pêcheux, com vistas a empreender análise sobre dizeres que margeiam o futebol dito moderno (entendido como sendo um construto do sistema capitalista que se apropriou do esporte para a obtenção de lucro, com mídias, mercado e apropriação de espaços de torcer) em uma perspectiva discursiva. Entre os pressupostos teóricos que se filiam a Pêcheux, destacam-se neste trabalho as memórias (discursivas), condições de produção e os interdiscursos que atravessam os dizeres analisados, além de suas condições de produção. Desta forma, constitui-se o estudo acerca dos aspectos discursivos nos dizeres: “Não ao futebol moderno!”, “Ódio eterno ao futebol moderno” e o “O esporte do povo não pode ser da burguesia”, como o objeto desta pesquisa. Identificar os motivos que causam a emergência desses dizeres e os aspectos discursivos neles presentes, como suas formações ideológica e discursiva, englobam a problemática analisada. Termina-se, com o resultado em um gesto de interpretação, identificando os condicionantes que margeiam a emergência dos dizeres analisados, em contrariedade e resistência à cristalização do futebol moderno, mercadológico. Como fontes de pesquisa, além de Pêcheux (1997), o trabalho se referencia principalmente nas contribuições de Orlandi (2001 e 2006) e Indursky (2011) quanto à Análise do Discurso e do portal Ludopédio nas contribuições e entendimentos acerca do futebol moderno.

 

Palavras-chave: Futebol moderno; Interdiscurso; Memória discurso; Condições de produção.

 

 

Abstract: This article aims to apply the theoretical assumptions of Discourse Analysis of the French line, whose main exponent is Michel Pêcheux, with a view to undertaking analysis on sayings that border the so-called modern football (understood as being a construct of the capitalist system that appropriated the sport for profit, with media, market and appropriation of spaces to cheer) in a discursive perspective. Among the theoretical assumptions that affiliate with Pêcheux, in this work the (discursive) memories, conditions of production and interdiscourses that cross the analyzed sayings, in addition to their conditions of production stand out. In this way, the study about the discursive aspects in the words: “No to modern football!”, “Eternal hate to modern football” and “The sport of the people cannot belong to the bourgeoisie”, as the object of this research. Identify the reasons that cause the emergence of these sayings and the discursive aspects present in them, such as their ideological and discursive formations, encompass the analyzed problem. It ends, with the result in a gesture of interpretation, identifying the constraints that border the emergence of the analyzed words, in contradiction and resistance to the crystallization of modern, marketing football. As sources of research, in addition to Pêcheux (1997), the work refers mainly to the contributions of Orlandi (2001 and 2006) and Indursky (2011) regarding Discourse Analysis and the Ludopédio portal in the contributions and understandings about modern football.

 

 

Keywords: Modern football; Interdiscourse; Speech memory; Production conditions.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Neste trabalho, busca-se aplicar os pressupostos teóricos da Análise de Discurso filiada a Michel Pêcheux, com vistas a estudar dizeres que margeiam o dito futebol moderno em uma perspectiva discursiva. Entre os pressupostos teóricos que se filiam a Pêcheux, destacam-se as condições de produção, memória discursiva e os interdiscursos que atravessam os dizeres analisados.

O estudo acerca dos efeitos de sentido que marcam os ditos: “Não ao futebol moderno”, “Ódio eterno ao futebol moderno” e “O esporte do povo não pode ser da burguesia” configura-se como o objeto desta pesquisa. Identificar os motivos que causam a emergência desses dizeres e os aspectos discursivos neles presentes englobam o problema analisado. Tem-se como hipótese para a problemática apresentada que a formação ideológica que permeia a realização desses dizeres é de posicionamento político e social contrária às segregações e injustiças sociais comuns ao sistema capitalista, que, para Morrison (1995) transforma o valor nos seres humanos, em detrimento da humanidade e generosidade valorizam-se propriedades e lucro.

 É tal formação ideológica que, devido ao assujeitamento do sujeito discursivo a ela, coordena suas memórias e formação discursiva, tendo ainda como condições à formação desses discursos os últimos anos de protestos e mobilizações por diversas questões de cunho social no país, como as relacionadas às novas mudanças impostas ao futebol brasileiro, bem como a crescente utilização das redes sociais como plataforma para essas reivindicações.

 O objetivo da pesquisa se centra em identificar os efeitos de sentido apreendidos, bem como determinar os aspectos discursivos dos dizeres analisados, com enfoque nas suas memórias, condições de produção e na identificação de interdiscursos que os imbricam. Este artigo é resultado de uma pesquisa qualitativa, de tipo bibliográfica, pois utilizou-se de bibliografia já existente para estudo do objeto, que se fez também exploratória, com a identificação de aspectos fundamentais para a emergência de uma materialidade discursiva, explorando-a.

 

2 A ANÁLISE DE DISCURSO

 

Entende-se como Análise do Discurso - ou apenas AD - de linha francesa a disciplina da linguística incumbida de estudar a linguagem em sua prática, marcada pelas interações sociais. A AD fora constituída no continente europeu e teve em Michel Pêcheux seu principal expoente, tendo como bases teóricas a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. Desse diálogo foram trazidos à tona conceitos básicos à disciplina, como discurso - prática discursiva realizada por um sujeito, marcado pelas relações sociais externas à fala-; sujeito - do discurso, afetado pelas relações sócio-históricas e pelo inconsciente-; e ideologia - coordenadora das memórias e do que pode e deve ser materializado como discurso pelos sujeitos. A luta de classes e o aparelhamento ideológico do Estado atuam diretamente nas ideologias, posicionamentos.

Na Análise de Discurso se tem como objeto central de estudo não apenas a língua, mas esta enquanto construtora de sentidos, constituídos a partir da relação existente entre sujeito e história. Como discurso entende-se a prática da linguagem, distancia-se, para tanto, dos conceitos de língua e fala apresentados por Saussure, em Curso de Linguística Geral[1]. É a partir da realização discursiva que são evidenciados os sentidos existentes num discurso que, por sua vez, apenas têm efeito(s) a partir de relações históricas, exteriores à fala, que passa a ser entendida como formulação, produção discursiva. 

Ao se analisar um discurso é preciso empreender tal análise compreendendo que, segundo Orlandi, (2001.p. 32), “há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo, que é o que existe entre o interdiscurso e o intradiscurso”. Entende-se como interdiscurso o eixo no qual é possível encontrar todos os dizeres já proferidos (ou também esquecidos), que representam o que é possível dizer acerca de determinada temática. Já o intradiscurso é definido como sendo o eixo em que ocorre a formulação, um momento específico em que se materializa um dizer específico que, por sua vez, só pode ser dito, pois há abertura, na esfera do interdiscurso, para essa possibilidade.

Assim sendo, em todo discurso dado diversos discursos outros influem à construção dos sentidos ali inferidos, havendo ainda a memória discursiva[2], que coordenada pela formação discursiva dominante resgata - ou esquece, apaga - para a formulação de um dito os sentidos permitidos por ela. 

É válido destacar que o sujeito do discurso ao formular os seus dizeres nem sempre o faz tendo consciência de que esses dialogam com discursos outros, nem que estes (ou a ausência deles) significam junto ao seu dizer. Tem-se, portanto, o que é compreendido como esquecimento (s). Para Orlandi (2001, p. 35) há dois esquecimentos, um na esfera do dizer, esquecimento da enunciação, pois o sujeito do discurso se considera como dono deste, não se atendo aos interdiscursos que ali influem. O outro (de número um) é da esfera do inconsciente e é determinado por como se é afetado pela ideologia, esquecimento ideológico.

Destacam-se ainda outros dois pressupostos teóricos básicos à Análise de Discurso, são eles as formações ideológica - FI - e também discursiva - FD. Quanto à FI: “Cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras” (PÊCHEUX E FUCHS, 1997, p. 166).

Observa-se que a formulação de um discurso qualquer só se dá, pois há, no sujeito do discurso, determinada ideologia dominante, que irá definir quais sentidos podem ser instaurados pela FD, logo, evidencia-se que há, por parte do sujeito do discurso, um assujeitamento frente à formação ideológica que coordena o que pode ser formulado por ele como dizer, pois “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada e em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2001, p. 43).

Por fim, cada discurso é afetado também pelas condições sociais que circundam os sujeitos dos discursos, são essas as condições de produção. A AD identifica a existência de duas condições de produção, sendo elas a ampla, ou histórica, e as condições imediatas, marcadas pelo contexto do momento de produção do discurso.

 

3 INTERDISCURSO E MEMÓRIA DISCURSIVA: UM POUCO DE HISTÓRIA

 

Na construção de significados se nota a importância dos ditos já existentes, que se materializam e significam junto a cada novo dizer, pois através deles o que é formulado pode ser inserido no campo do dizível. 

Assim, a memória e o interdiscurso têm papel fundamental no processo discursivo. Essa memória, uma memória discursiva, define-se como sendo aquela responsável por resgatar os sentidos pré-existentes à execução do intradiscurso, no entanto esses sentidos têm de estar alinhados à formação discursiva acionada no momento da formulação do dito.

[...] se a memória discursiva se refere aos enunciados que se inscrevem em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os sentidos, como é o caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-Sujeito no âmbito de uma formação discursiva. Mas não só: a memória discursiva também diz respeito aos sentidos que devem ser refutados. Ou seja: ao ser refutado um sentido, ele o é também a partir da memória discursiva que aponta para o que não pode ser dito na referida FD (INDURSKY, 2011, p 87).

Logo, observa-se que, como explicitado anteriormente, o interdiscurso fornece ao intradiscurso sentidos já existentes àquele eixo temático, entretanto, sem estar restrito apenas a uma única formação discursiva. Nota-se:

[...] tanto memória discursiva como interdiscurso dizem respeito à memória social, mas não se confundem. Há diferenças importantes entre as duas noções. A memória discursiva é regionalizada, circunscrita ao que pode ser dito em uma FD e, por essa razão, é esburacada, lacunar. Já o interdiscurso abarca a memória discursiva referente ao complexo de todas as FD. Ou seja, a memória que o interdiscurso compreende é uma memória ampla, totalizante e, por conseguinte, saturada. (INDURSKY, 2011, p 87-88).

 

Estabelecidos tais conceitos, fundamentais para este trabalho, passa-se à análise de construções significativas que margeiam o dito futebol moderno, para tanto é necessário um resgate histórico, analisando desde a possível invenção do esporte aqui analisado.

 

3.1 BREVE HISTÓRICO ACERCA DO FUTEBOL

 

Não é missão das mais fáceis reconstruir os caminhos históricos seguidos pelo futebol no mundo. São diversas e díspares ideias apresentadas acerca dos caminhos trilhados por esse esporte. Neste trabalho, a perspectiva histórica a ser adotada é a das raízes chinesas para o surgimento do futebol (nota-se, na história reproduzida pelo senso comum, o apagamento da história do futebol anterior à Inglaterra), no que é definido pelo inglês David Goldblatt como “pré-história do futebol”.

Segundo o pesquisador inglês, os chineses, ainda no período das dinastias, foram os primeiros a praticar jogos que utilizassem os pés e um objeto redondo em sua prática. Vejamos a citação a seguir, feita pelo pesquisador brasileiro Marcos Alvito, responsável por traduzir e resenhar o livro de Goldblatt, “The ball is round: a Global History of Football”, tendo seu trabalho publicado em série de artigos no portal Ludopédio.

O capítulo 1 chama-se Chasing Shadows: the Prehistory of Football (Perseguindo sombras: a Pré-História do futebol). Ele começa examinando o cuju, jogo amplamente praticado na Dinastia Han (206 a.C. a 221 d.C.), cujo nome pode ser traduzido como chute-bola. O jogo provavelmente foi praticado antes, mas somente sob a Dinastia Han é que foi formalizado e organizado como um esporte. A bola consistia numa esfera de couro costurada e recheada com pele ou penas. Confrontavam-se dois times em um campo com dois gols marcados nas extremidades. Os chutes na bola eram importantes, mas ela também era carregada com as mãos e era permitido derrubar os adversários com força. O jogo era benquisto na Corte Imperial mas era sobretudo praticado no Exército onde era ao mesmo tempo uma forma de treino e de recreação. Nas dinastias subsequentes o jogo continuou a ser praticado mas mudou a forma da bola, que passou a ser oca, o que facilitava o controle mas dificultava o jogo mais físico. De qualquer forma, o cuju irá desaparecer em meados do século XVII, durante a Dinastia Ming (1368-1644). (ALVITO, 2017).

 

Percebe-se, portanto, que ainda no século III, depois de Cristo, já havia registros da existência de esportes praticados com os pés, no entanto, ao analisar-se a forma de jogo e as regras existentes, ou até mesmo a ausência delas, nota-se um distanciamento entre o cujo e o futebol popularizado posteriormente. Cabe investigar, no entanto, as causas e origens dessas rupturas, assim como apontá-las.

Goldblatt apresenta a tese de que a prática do cujo fora adaptada e disseminada também em territórios conquistados militarmente pelos chineses, disseminando, assim, de maneira não baseada ainda em regras universais para a prática esportiva, o cujo. Vê-se.

Ao que parece, os chineses acabaram levando o cuju para as terras alcançadas por eles militar ou comercialmente. Um indício disso é o sepak raga, jogo praticado na Malásia quatrocentos anos atrás e que pode ser descrito como uma mistura de futebol e voleibol. Embora os japoneses não gostem de admitir, também o kemari é derivado da China. Começou a ser praticado no século XII, sobretudo dentre a nobreza. Quatro árvores, preferencialmente pinheiros, demarcavam o campo, que era pequeno, um quadrado com seis a sete metros de largura. Oito jogadores participavam, dois em cada árvore. A bola era oca, leve e feita de pele de cervo, geralmente tingida de branco ou amarelo. O cortesão com o status mais alto chutava a bola para o alto e o objetivo era mantê-la no ar o mais tempo possível. Às vezes havia a contagem formal dos chutes e o árbitro poderia conceder pontos extras para chutes impressionantes ou com mais estilo (ALVITO, 2017).

 

Para complementar ainda mais este aporte histórico acerca da pré-história do futebol, é preciso apontar também a prática de jogos similares ao futebol visualizado hoje no continente americano, mais precisamente na Mesoamérica, onde hoje se localizam o México, a Guatemala, Belize e Honduras. É válido destacar que, segundo o pesquisador inglês, em diversas outras culturas antigas existiram práticas esportivas coletivas, no entanto estas analisadas são as principais, por se configurarem como sendo, por proximidade nos procedimentos, as mais alinhadas ao futebol surgido à modernidade. Como é possível observar na citação a seguir.

[...] Na Mesoamérica, o jogo era praticado por todas as classes sociais. O significado do jogo relacionava-se aos complexos sistemas astronômicos e ao calendário que organizavam estas sociedades. A divindade protetora do jogo era Xolotl que aparece no céu noturno como Vênus e os jogadores aparecem nos murais como representando outros corpos cósmicos. O jogo era geralmente acompanhado ou precedido por apresentações teatrais e havia um animado mercado de apostas. Inimigos vencidos na guerra primeiramente jogavam antes de terem suas cabeças cortadas ou seus corações arrancados. Os espanhóis proibiram o jogo. O que nem era necessário diante do genocídio dos povos da Mesoamérica através de doenças e do processo de escravização. Mesmo assim, no noroeste da província de Sinaloa, no México, uma variante do jogo, chamada de ulama, ainda sobrevive (ALVITO, 2017).

 

É possível apreender das práticas Mesoamericanas influxos ainda hoje visualizados no esporte. Como por exemplo a existência do mercado de apostas, que segue os passos de cada partida de futebol em qualquer canto do mundo, bem como a relação com as divindades. Futebol, fé, devoção e promessas estão longe de deixarem de constituir uma simbiose, basta apenas observar algumas comemorações de jogadores e torcedores após a feitura de um gol, ou mesmo antes da realização de partidas.

Enfim, ainda em seu período pré-histórico, há, no continente europeu, relatos de práticas esportivas similares às anteriormente apresentadas.

O futebol, ou ao menos sua primeira forma, irá nascer no noroeste da Europa, na opinião do autor sobretudo junto às sociedades célticas, que de alguma forma mantiveram algum grau de autonomia diante da cultura dominante na Idade Média. Dentre eles durante toda a Idade Média foram praticados jogos de larga escala, envolvendo dois grupos a disputar uma bola a ser levada de um lugar para o outro, sem muitas regras ou restrições. Normalmente os confrontos envolviam dois distritos ou duas aldeias, com a bola sendo disputada pelos campos abertos que os separavam. Às vezes os adversários também podiam ser bairros diferentes, grupos de idade distintos ou até casados e solteiros. Na Cornualha havia o hurling e no sul de Gales o knappen. No início da Idade Média o futebol era tão popular e difundido que diversos reis emitiram éditos tentando banir, controlar ou restringir a prática. Era muito violento, com contusões e ferimentos abundantes e mortes relativamente frequentes. Dentre as cidades que tentaram proibir o jogo estão algumas que hoje são verdadeiros templos do futebol: Halifax, Leicester, Manchester e Liverpool. As regras variavam de local para local, as versões eram muitas. De qualquer maneira, tanto no campo quanto na cidade, o esporte era adorado pelas camadas populares (ALVITO, 2017).

 

O que se observa acerca do futebol, a partir do século XIX, é o caminho contrário ao que fora trilhado pelo esporte de outrora, no período pré-futebol. Para compreender o contexto em que se insere esse projeto é preciso entender também as mudanças que ocorriam à época, não apenas no que tangia ao jogo, mas também ao seu exterior. Como destacado por Alvito, o futebol em sua primeira forma, nascido no noroeste europeu, era adorado pelas camadas populares, tanto urbanas quanto camponesas, entretanto essa característica do esporte é alterada a partir do século XIX. Nota-se:

 

[...] Este jogo, que podemos chamar de futebol das multidões, estava em forte declínio no início do século XIX. De um lado a religião Puritana condenava o jogo como ímpio e proibia toda e qualquer atividade aos domingos. Os metodistas criticavam a desordem social, a periculosidade e a violência descontrolada do futebol. A nova classe dos industriais e os homens de negócio em geral temiam pela propriedade e pela disciplina de trabalho. Até mesmo os artesãos especializados, desejosos de marcar uma distância social entre si e o proletariado rural ou a nova massa de trabalhadores chegada às cidades, condenavam o jogo como bárbaro e idiota. Em inúmeras cidades e regiões o futebol será proibido por lei. Com uma tal gama de opositores, não é de se estranhar que ao final do século XIX o futebol informal e tradicional estivesse não somente em declínio mas verdadeiramente desaparecendo (ALVITO, 2017).

 

Percebe-se então que o futebol, jogado até o momento pelas camadas mais populares, fora estigmatizado pela nova elite industrial, principalmente na Inglaterra, que dominara as inovações tecnológicas surgidas no período, advindas junto à revolução industrial. Entretanto um fenômeno é fundamental para a compreensão da transformação a que fora submetido o futebol em território inglês, a apropriação do esporte feita pelas escolas públicas britânicas, escolas estas destinadas à elite local:

[...]os rapazes das “public schools” descobriram o futebol tradicional, jogado nas ruas, que com seu caráter anárquico e violento, logo caiu no gosto dos estudantes.[...] Foi assim que o futebol logo se tornou uma febre entre os alunos das escolas mais exclusivas da Inglaterra. Em Eton, a escola mais tradicional e prestigiosa do país, já se jogavam duas formas de futebol desde a metade do século XVIII. Em cada escola havia uma regra própria, inclusive adaptando o jogo ao espaço disponível. Concomitantemente a isso, surge uma proposta de reforma do ensino das “public schools” [...] Foi aí que entrou o futebol. Não havia como educar os rapazes sem ter um mínimo de controle sobre eles. Quando a direção da escola e os professores começaram a organizar e coordenar os jogos, passaram a estar novamente no topo de uma hierarquia, que tinha ainda os alunos mais velhos e terminava nos calouros. Cada um com seu papel. Ao mesmo tempo, o futebol desgastava os estudantes, queimando seu excesso de energia e hormônios (ALVITO, 2017).

 

Por fim, é a partir da apropriação do futebol, para inseri-lo no currículo escolar das escolas de elite, que foram observadas as primeiras sistematizações e definições de padrões e regras para o futebol, potencializadas nos anos seguintes, com a criação, em 1863, da Football Association -FA- bem como, em 1871, da FA Challenge Cup, primeiro torneio oficial de futebol no mundo e ainda hoje existente. Tais acontecimentos consolidaram a aproximação do modo como era anteriormente jogado o futebol, de forma totalmente amadora e sem maiores preocupações, à concepção que se tem do futebol praticado por todo o mundo hoje, transformando-o.

[...] na Inglaterra surgem as primeiras regulamentações, principalmente no que se refere ao número de jogadores. Determinaram o tamanho de campo de jogo (120×80 metros). Surgem os gols, que são dois postes com um metro de largura e se chamavam arcos, por isso os goleiros eram chamados de arqueiros. A bola era de couro e o gol era validado quando a bola passava por entre os arcos (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1987; DUARTE, 1994. Apud IANNI, 2008).

 

 

É importante salientar que a introdução da elite inglesa à prática do futebol e a regulamentação deste não afastaram as camadas mais populares, como a classe operária britânica, do jogo, fora notável a massiva presença desses nos torneios iniciais de futebol ingleses, embora tendo seu desempenho prejudicado em comparação aos jovens provindos das escolas da elite, adaptados ao esporte regido por regras desde as aulas de educação física e sem ter de cumprir exaustivas cargas de trabalho nas indústrias. No entanto, não foi preciso muito tempo para que a popularização e paixão pelo esporte fossem amplamente disseminadas pelos mais pobres:

[...]entre 1840 e 1870 o jogo folclórico, anárquico e desorganizado foi formalizado e codificado nas public schools com propósitos pedagógicos, tornando-se o esporte preferido de uma juventude de “bem-nascidos”. No último quartel do século XIX, o futebol irá passar por outra enorme transformação: será amplamente adotado pela classe trabalhadora, que doravante vai constituir a massa de jogadores e de espectadores do novo esporte. Goldblatt chega a dizer que os trabalhadores “colonizam” o futebol. (ALVITO, 2017).

 

O novo conceito apresentado para o esporte passa a simbolizar o futebol, na Inglaterra, sendo denominado de Football recebe também, em fase posterior, o título de futebol moderno. No entanto, no perpassar dos séculos, esta não é a única acepção para o termo, ao qual emergiram significados outros. Vê-se:

Existem pelo menos três definições do que vem a ser esse futebol. A primeira delas remete ao século XIX, quando o futebol ainda estava surgindo enquanto prática esportiva e longe de ser o que conhecemos hoje. Em 1863, após a fundação da Football Association (FA), as regras do futebol foram sistematizadas a partir do jogo praticado nas Public Schools britânicas. Posteriormente, para diferenciar esse novo futebol das práticas semelhantes, foi atribuído o termo Futebol Moderno. Assim, o novo futebol, organizado e sistematizado em regras, passaria a ser visto como moderno, enquanto as outras práticas semelhantes passariam a ser vistas como um futebol primitivo[3] (FIGOLS, 2014).

 

Para Figols (2014) há ainda outras duas acepções que emanam sentidos diversos ao dizer futebol moderno. O Sentido segundo se condiciona a partir da copa do mundo de futebol de 1974, ocasião em que as seleções da Holanda e Alemanha apresentam ao mundo técnicas para o jogo coletivo até então desconhecidas da comunidade mundial. Segundo Figols, essa modalidade técnica apresentada foi chamada pelos analistas como futebol total, entretanto, não demorou muito para que emergisse outra nomenclatura, sendo denominada, posteriormente, como futebol moderno.

Já a última construção significativa para o dizer futebol moderno:

O terceiro momento em que o termo Futebol Moderno apareceu foi nos anos 1980, quando o futebol passou por profundas mudanças. O processo de espetacularização do esporte tem início muito antes dessa década, mas foi nos anos 1980 em que essa espetacularização tomou conta do futebol. Na verdade, quem tomou conta do futebol foram as televisões. Acompanhando esse processo de espetacularização do esporte está a mercantilização do futebol. Os clubes abriram as suas fronteiras regionais e foram em busca de mercados consumidores. A internacionalização dos clubes foi um fator decisivo para o futebol conquistar novos territórios e, consequentemente, novos mercados. Aqui fica evidente o papel da televisão na difusão global dos clubes. Em outras palavras, o futebol passou a ser visto como um produto, um produto da indústria do entretenimento, um produto das televisões (FIGOLS, 2014).

 

É esta terceira significação do termo que é analisada neste trabalho, sendo esse dito futebol moderno possível causa principal da emergência dos dizeres ‘não ao futebol moderno’, ‘o esporte do povo não pode ser da burguesia’ e ‘ódio eterno ao futebol moderno’ que compõem o corpus desta análise. É contra tal modelo de futebol que torcedores, organizados ou independentes, mobilizam-se, unindo-se em redes sociais, ou criando movimentos nas próprias arquibancadas a fim de expressarem as suas reivindicações, desses espaços emergem os discursos analisados no trabalho.

Portanto, é possível identificar, no estabelecimento de novas formulações ao dizer futebol moderno, o fenômeno da ressignificação, “uma quebra do regime de regularização dos sentidos. Isto se dá porque o sujeito do discurso pode contra-identificar-se com algum sentido regularizado ou até mesmo desidentificar-se de algum saber e identificar-se com outro” (INDURSKY, 2011, p. 71), possível apenas através do diálogo entre interdiscurso e memória.

O interdiscurso atua por comportar todos os ditos, não ditos, apagados e esquecidos que constroem a rede de memória relacionada ao eixo temático futebol moderno (bem como o não moderno). Já a memória discursiva é acionada no momento em que irrompe à materialidade um sentido novo a um dito que em outro dado momento possuiu outra significação, por ela possibilitar a construção de sentidos a partir de formação discursiva nova, uma nova forma-sujeito, como aponta Indursky:

Os sentidos, à força de se repetirem, podem acabar por se modificar, de modo que as redes discursivas de formulação, formadas a partir de um regime de repetibilidade, vão recebendo novas formulações que, ao mesmo tempo que vão se reunindo às já existentes, vão atualizando as redes de memória (INDURSKY, 2011, p. 76).

 

Cita-se a pesquisadora novamente para que se defina que “Ou seja, os sentidos se movem ao serem produzidos a partir de outra posição-sujeito ou de outra matriz de sentido” (INDURSKY, 2011, p.77). Nota-se, portanto, como as formações ideológica e discursiva atuam junto ao sujeito do discurso, possibilitando a transferência de sentido de determinado dizer (anteriormente proferido a partir de outra posição-sujeito e inserida em outra formação discursiva), para que possa transportar-se a uma nova matriz de sentido, evocada por uma posição-sujeito divergente da primeira, inserindo-se em uma nova formação discursiva.

É essa nova formação discursiva que evoca a memória discursiva presente no discurso, que resgata o que pode ser materializado como dizível, por isso se fez necessária a ressignificação do dizer futebol moderno, para adequá-lo a uma nova situação (futebol marcado pelo consumo, mercadológico e midiático) e também a outra posição-sujeito (nos discursos analisados, ideologicamente contrária às alterações sociais que afetam o futebol moderno). A memória discursiva, portanto, fora fundamental para o estabelecimento dos sentidos inferidos no discurso ressignificado por, ideologicamente, condicioná-lo a partir da FD.

É possível registrar que ao formularem-se os dizeres em contrariedade à concepção de futebol moderno (mercadológico), faz-se diante de uma memória discursiva diferente da que possibilitou outros sujeitos a materializarem alguma das duas outras significações existentes para o termo, já que é observada nela a negação e contrariedade às transformações impostas ao futebol; não ao processo de criação de regras e sistematização do esporte (sentido primeiro de futebol moderno), mas sim contra a mercantilização, elitização de estádios e interesses cada vez mais comuns à sociedade de consumo, como as televisões como detentoras dos direitos sobre os jogos.

Assim, é possível evidenciar a construção de novas significações apenas possível pela alternância de formações e memórias discursivas na materialização do dito futebol moderno e dos que emergem a contrariá-lo.

 

4 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO: UM GESTO DE INTERPRETAÇÃO

 

Ao se trabalhar com a Análise de Discurso, por compreender a linguagem em sua exterioridade, marcada pelo histórico e social, faz-se necessário investigar as condições externas ao discurso que atuam na formulação de cada dizer, bem como a memória (e interdiscurso) e a ideologia.

Levando em conta que o homem na sua história considera os processos e as condições de produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as condições em que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar a regularidade da linguagem em sua produção o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade (ORLANDI, 2001, p. 16).

 

Essas condições de produção, citadas por Orlandi, referem-se aos contextos externos ao dizer que atuam e possibilitam sua emergência. Há, sob a égide da Análise de Discurso, duas condições para que se possa formular um discurso, uma denominada de histórica - ou ampla - que contempla todas as interações sociais que vêm a significar em um dizer, abarcando inclusive todos os ditos anteriores a ele. A outra condição de produção é denominada como imediata, por referir-se a tudo aquilo que estabelece sentidos no momento da emergência de determinado dizer. Busca-se, com a condição imediata, ater-se a tudo aquilo que cerca e pode significar em um discurso no seu momento de formulação.

 É ainda Orlandi quem define que:

O que são pois as condições de produção? Elas compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte da produção do discurso. A maneira como a memória “aciona”, faz valer, as condições de produção é fundamental [...] Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico (ORLANDI, 2001, p. 30).

 

A pesquisadora salienta que as condições de produção de dado discurso se fazem a partir do sujeito do discurso e da situação em que ocorre a formulação desse dito, sendo impossível a separação entre eles. 

Assim, investigar as condições de produção - imediatas e amplas - que trazem à emergência os ditos em contrariedade ao modelo de futebol moderno se faz relevante. Passa-se, portanto, a essa investigação, analisando-se os sujeitos dos discursos e contextos em que os ditos vieram à materialidade.

 

4.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

É evidente a importância que têm adquirido as mídias sociais, nos últimos anos, como plataformas de debates. Pode-se nessas publicar, comentar, compartilhar dizeres relacionados a qualquer temática. Esta possibilidade de interação faz com que, cada vez mais, as plataformas digitais se insiram como centros onde é possível informar-se e comunicar a respeito do que for mais cabível à formação ideológica do usuário, aliando-se a isso o fato de que é possível, ainda, unir-se àqueles que possuem visões de mundo e interesses alinhados e formar grupos. Assim, informa Recuero:

A formação de redes sociais antecede a internet, porém, com a Web, as redes ganham novas características. Na Web, elas se expressam em sites e são formadas por “um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais)” (RECUERO, 2009, p. 24 apud ALCANTARA, 2014, p. 109).

 

Visto isso, observa-se a insurgência, nos últimos anos, de grupos e comunidades nas redes sociais que questionam os caminhos a que fora direcionado o futebol no Brasil. Páginas no facebook como O canto das torcidas; Jogo dez da noite não; Futebol mídia e democracia; Brigada Marighella-EC Vitória, entre outras, fazem dessa rede meio principal para oposição ao modelo de futebol moderno, utilizando-se dos dizeres ‘não ao futebol moderno’, ‘o esporte do povo não pode ser da burguesia’ e ‘ódio eterno ao futebol moderno’.

É válido destacar que com a escolha do Brasil como sede para a copa do mundo de futebol do ano de 2014, o país fora obrigado pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), entidade responsável pela organização do evento, a cumprir uma série de exigências para adequar-se ao padrão exigido pela entidade máxima do futebol. Este padrão fez com que diversos estádios brasileiros fossem adaptados, reformados, fugindo completamente às suas características e diversas arenas fossem construídas[4].

O “padrão FIFA” é um conjunto de recomendações endereçados aos países sedes das competições organizadas em parceria com esta entidade – as Copas do Mundo de futebol masculino, sobretudo – e boa parte delas estão dirigidas aos estádios. Todavia, é uma ilusão imaginar que seus efeitos sejam limitados aos eventos FIFA, pois tais recomendações acabam performando o futebol de espetáculo como um todo. A preocupação com segurança, conforto e rentabilidade (este item não é tão explícito no tal Caderno de Encargos) dos estádios, como se sabe, norteia as recomendações (DAMO, 2017).

 

Assim, o que vinha a ser moderno se demonstrou uma ruptura às tradições brasileiras de arquibancada (esta constatação será mais elaborada adiante). São notáveis, nos últimos anos, as diversas transformações de estádios de futebol em arenas; as setorizações de espaços, com entradas cada vez mais caras, que afastam os torcedores menos prestigiados financeiramente do hábito de acompanhar, das arquibancadas, as partidas de futebol; bem como séries de proibições interferem diretamente no hábito e modos de torcer, como as constantes proibições de uso de sinalizadores, bandeiras, faixas, uniformes e até mesmo de acesso de torcedores organizados às arenas e estádios, exaustivamente identificados como vândalos e desordeiros, à margem do bom comportamento próprio às novas arenas[5].

A reinvenção dos estádios (“arenização”, como prefere nosso jovem autor) não se reduz apenas a uma arquitetura sofisticada e monumental, alvo de ufanismo e promotora de mais um cartão postal em nossas metrópoles. Impõe-se uma rotina altamente organizada, ao empobrecer a sociabilidade historicamente construída no processo de apropriação desse espaço público pelas massas urbanas. O atual “modelo FIFA” concebe o moderno estádio como equipamento destinado a um público específico, “figurante”, seleto, solvável, disposto a pagar caro por tecnologia, conforto e segurança. Um público “familiar” e “ordeiro”, que vai ao estádio consumir o espetáculo e não realizar tradicionais formas de protagonismo que não interessam ao novo modelo hegemônico. Ainda no plano da retórica modernizadora, pretende-se um estádio “civilizado”, em contraposição ao caos e à “barbárie” supostamente reinantes no modelo anterior, considerado vulnerável a movimentos de massa incontroláveis e sujeito à atuação de grupos sociais “perigosos” (MASCARENHAS, 2017).

 

Mascarenhas defende que o novo modelo de estádios é construído “submetido aos implacáveis princípios do gerenciamento técnico-empresarial. Gerenciamento que visa “requalificar-revitalizar-refuncionalizar” o tradicional equipamento, tornando-o mais rentável e, sem meias-palavras, mais bem frequentado” (MASCARENHAS, 2017), explicitando as finalidades mercadológicas e seletivas do futebol moderno e seu processo de reformulação dos estádios.

Para melhor compreender a relação existente entre o fenômeno da arenização dos estádios afetados pelo padrão FIFA e o molde comportamental imposto aos torcedores que os frequentam, alguns episódios históricos são relevantes e merecem ser, brevemente, apresentados.

Vejamos primeiro o caso da Inglaterra, que durante os anos de Thatcher no poder teve o futebol impactado por suas políticas neoliberais. Seu governo conservador, com a flexibilização de leis trabalhistas e a redução de gastos estatais acabou fortalecendo Londres como centro financeiro e fechando várias fabricas, sobretudo nas cidades mais ao norte. A conjuntura política econômica levou a indignação de trabalhadores operários, que passaram a levar faixas de protestos aos jogos, travando assim uma luta entre governo e algumas torcidas. Com as tragédias de Heysel (1985) e Hillsborough (1989), Margareth Thatcher se aproveitou da situação para criminalizar a torcida do Liverpool (cidade com forte movimento sindical de fábricas) e promover reformas nos estádios, transformando-os em arenas e extinguindo setores mais populares, além de impulsionar a criação da Premier League em 1992, campeonato patrocinado até 2016 pelo Barclays Bank.

Voltando ao nosso cenário nacional, as faces do futebol moderno ganharam força com a criminalização de torcidas e a vinda de megaeventos. A copa do mundo trouxe o “padrão FIFA” ao Brasil, o que acelerou o processo de “arenização” dos nossos estádios acompanhado da privatização destes. No Rio de Janeiro temos um exemplo concreto que evidencia a relação de um projeto excludente de cidade/estado, com um estádio elitizado (VILLELA, Mariana V. de Lara, 2017).

 

Percebe-se que fora a Inglaterra a inventora também do processo de arenização dos estádios, as reformas que excluíram setores mais populares e afastaram os torcedores organizados, tidos como extremamente violentos, esteve diretamente relacionada à transformação do campeonato inglês em uma liga midiatizada, tendo seus direitos de transmissão negociados por todo o mundo, além do citado patrocínio de um poderoso banco, demonstrando as verdadeiras faces do futebol moderno.

É ainda no exemplo inglês que se pode perceber a criminalização dos torcedores, responsabilizados por tragédias ocorridas em estádios (estes anteriores ao processo de arenização), culminando na construção de estigmatizações e estereótipos aos torcedores das camadas mais populares, processo bastante similar ao que atualmente ocorre no Brasil, citado por Villela e exemplificado anteriormente neste trabalho.

Contemporâneas às jornadas de junho de 2013, surgiram no Brasil mobilizações como a ‘frente nacional de torcedores’, ‘não vai ter copa’ e ‘copa para quem?’ que vieram a questionar os gastos com as exigências a serem cumpridas para a realização do torneio. Nota-se que tais mobilizações influem para que surjam à emergência, nas próprias manifestações, dizeres múltiplos de questionamento a este aparelhamento mercadológico do esporte e gastos bilionários com as obras de reforma e construção de arenas, em detrimento de diversas áreas emergenciais do país.

 

4.2 SOBRE OS DIZERES: IDENTIFICANDO ALGUNS PRESSUPOSTOS

 

Em dois dos dizeres analisados há referência explícita ao futebol moderno, este, por sua vez, já houvera passado por processos de inferência de sentidos novos através da história. Ao dizer ‘não ao futebol moderno’ ou ‘ódio eterno ao futebol moderno’, o sujeito do discurso utiliza de sua memória discursiva para negar, odiar, o futebol moderno. Pode-se inferir ainda que, desse modo, é apenas possível ao sujeito do discurso negar ou odiar o futebol moderno por ter um posicionamento ideológico contrário àquele que consolida a modernização do futebol como um produto, um mercado, já que em AD tudo que pode ser dito é determinado por ele. Sendo o futebol moderno, contrariado por esses dizeres, o reflexo do sistema capitalista, que visa o lucro e vê no futebol uma geração de riquezas, tendo nos milhões de torcedores consumidores, pode-se apontar que a formação ideológica que permite a formulação desses dizeres é de contrariedade a esse sistema vigente e já solidificado.

 

Imagem 1- Publicação no Facebook.  

Fonte: página no facebook Brigada Marighella-EC Vitória (2017)

 

Já ao se materializar o dizer ‘o esporte do povo não pode ser da burguesia’ o sujeito discursivo apenas o pode fazê-lo condicionado pela história, representada pela memória, pois o dizer dialoga diretamente com ela. A significação construída a partir da formação discursiva presente é contrária, não aceita, as novas condições impostas ao futebol no Brasil. Ao analisar-se a história do futebol se nota que suas origens iniciais são sim burguesas, entretanto, a popularização do esporte entre as camadas menos abastadas da sociedade não tardou, popularização notável até a atualidade. 

 

Imagem 2- Publicação no Facebook

Fonte: Fonte: página no facebook Brigada Marighella-EC Vitória (2017)

 

 

Ao formular o dizer ‘o esporte do povo não pode ser da burguesia’ há, portanto, uma de-significação - que “Para Orlandi, a de-significação traz a impossibilidade de existência daqueles sentidos, como se eles não fossem possíveis. Evita-se-os.” (MACHADO. 2014 p, 9) -  de sentidos que possam emergir como, por exemplo, quanto às raízes burguesas do futebol.

Assim, é possível definir a posição deste sujeito em uma FI contrária à burguesia, que não aceita a imposição de novos costumes ao futebol brasileiro, definindo tais mudanças advindas ao futebol moderno como burguesas, para atender apenas a parcela mais elitizada da população. Ao defender que o esporte é do povo o sujeito discursivo resgata, através da memória, o processo de apropriação e popularização do futebol feito pelos trabalhadores fabris, iniciado, como o próprio futebol regimentado-moderno, na Inglaterra.

 

4.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

 

No que trata às condições de produção dos dizeres, objeto do referido estudo, passa-se às considerações acerca delas, nas bases da AD, no sentido estrito e amplo, como apresenta a estudiosa Orlandi (2006, p. 152): “dar conta da relação linguagem/contexto, compreendendo-se em seu sentido estrito (situação de interlocução, circunstância de comunicação, instanciação de linguagem) e no sentido lato (determinações histórico-sociais, ideológicas, etc.)”. :

 

Quadro 1 – Condições de produção das sequências discursivas

CONTEXTO IMEDIATO

CONTEXTO AMPLO

·         As páginas do Facebook

·         As pessoas que fizeram as postagens com os ditos; quem criou a página;

·         O momento em que as minorias começam a ter visibilidade quanto às afirmações que fazem;

·         O fato de os dizeres terem sido postados numa página do Facebook e não em outro lugar.

·         O ciberespaço, a internet;

·         A sociedade contemporânea e as novas interações;

·         O Facebook é uma rede social virtual aberta.

Fonte: elaborado pelo próprio autor.

 

Como contexto imediato à formulação dos dizeres se tem o Facebook, espaço em que se materializam os dizeres, que surge, então, como condição para a formulação desses. O fato desses dizeres terem sido proferidos (postados) nessa plataforma, não em outra - a plataforma utilizada condicionou, no momento da formulação, os discursos a partir dela propagados, que se moldaram às características dos ditos naquela mídia - insere-se também como condicionante imediato aos discursos.

Ainda, as recentes mobilizações contrárias à transformação dos estádios brasileiros em arenas, cobranças de preços elevados para os ingressos, imposição de horários que não dialogam com a realidade da rotina da maioria da população brasileira e de novos costumes ao torcedor brasileiro também os são condicionantes, que têm nas redes digitais e, principalmente, nas páginas analisadas, notoriedade.

Como contexto amplo é possível identificar todos os ditos e não ditos que constituem o interdiscurso e são resgatados pela memória discursiva dos sujeitos do discurso. É a partir dela que emergem os sentidos, bem como por intermédio dela é possível resgatar o modelo de futebol anterior ao que é, nesses dizeres, contestado. Portanto, a crítica ao modelo econômico capitalista, que se cristalizou nas estruturas dos clubes e entidades futebolísticas, responsáveis por gerir o futebol, como a FIFA e CBF (Confederação Brasileira de Futebol), que se estabelecem a partir deste modelo de futebol moderno com imensos ganhos financeiros, é também aqui relevante.

Tem-se, por fim, na instância do contexto amplo, o fato do Facebook ser um espaço público, rede virtual aberta, sendo possível acesso a qualquer um que esteja conectado à internet e cadastrado no site. O ciberespaço, ou seja, a internet, também faz parte do contexto amplo. Nota-se que a página Facebook está inserida dentro da rede, internet, como diversas outras, a amplitude abarcada pelo ciberespaço é, portanto, um contexto amplo, enquanto as páginas do Facebook anteriormente citadas instauram-se como imediatas à materialidade discursiva.

Ante o exposto, as relações sociais estabelecidas historicamente são fundamentais à construção das significações postas em um dado discurso. As alterações nos mecanismos de comunicação humana também são inseridas no campo dos condicionantes amplos à produção do dizer. É notável que no decorrer da história da humanidade a sociedade tem alterado os modos como são estabelecidas as relações, adequando-se aos contextos de cada época. Assim sendo, no atual modelo de sociedade contemporânea, diversas alterações ocorreram na comunicação humana, concretizando-se modelos novos para a interação, como a internet e suas múltiplas possibilidades interacionais.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Buscou-se neste artigo fazer uma leitura de discussões socialmente relevantes à sociedade brasileira, para tanto, analisando-se discursos que emergiram a partir das relações sociais, o que possibilitou compreender os influxos que condicionam essas interações. A Análise do Discurso é fundamental para tal empreitada, por possibilitar o olhar acerca da exterioridade da língua. Investigam-se, assim, as raízes de cada discurso, as raízes das interações no contexto sócio-histórico, ideológico.

Pôde-se perceber, finda a análise, que as estruturas temerárias que tentam se impor sobre a sociedade brasileira - em sua parcela mais pobre - a cada dia se mostram mais evidentes e visam abarcar todas as instituições e manifestações culturais presentes na sociedade. É notável, diante do que fora exposto neste artigo, que os processos de elitização dos antigos estádios de futebol brasileiro e da pedagogização dos torcedores que frequentam esses espaços estão diretamente relacionados aos interesses do neoliberalismo, como das grandes empreiteiras responsáveis pelas construções e, em muitos casos, concessionárias das arenas públicas, explorando-as financeiramente, bem como das grandes mídias que detêm direitos de transmissão das partidas, estas cada vez mais valiosas em um contexto de afastamento do torcedor dos estádios.

Assim, os discursos analisados demarcam espaço de contrariedade às explorações do capital, percebe-se o distanciamento e o confronto frente às investidas do mercado capitalista sobre o futebol. É inegável a relação existente entre o futebol moderno, desde seu surgimento, com as elites, no entanto é preciso destacar - e este foi um dos pontos deste artigo - a importância da mobilização dos torcedores, nas arquibancadas dos estádios ou nas redes sociais, contra as faces do futebol moderno.

Por fim, reitera-se a relevância da AD para a investigação aqui realizada, espera-se a cada vez mais abrangente politização dos torcedores brasileiros, bem como de todos os indivíduos oprimidos neste país, para que seja possível romper-se definitivamente o silêncio frente às relações exploratórias, que têm demonstrado forte sobrepujança.

 

REFERÊNCIAS

 

ALCÂNTARA, Livia Maria de, e D’ANDRÉA Carlos Frederico de Brito. Redes de movimentos sociais e intervenção na esfera pública interconectada: um estudo da campanha pelo limite da terra na internet (2012). In: Cultura, política e ativismo nas redes digitais / Sérgio Amadeu da Silveira, Sérgio Braga, Cláudio Penteado (organizadores). – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. p. 103 a 124.

 

ALVITO, Marcus. The ball is round, Capítulo 1: A Pré-História do Futebol. 2017. Disponível em: <http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/the-ball-is-round-capitulo-1-a-pre-historia-do-futebol/>. Acesso em: 22. Maio. 2017.

 

ALVITO, Marcus. The ball is round, Capítulo 2: O jogo mais simples: a Grã-Bretanha e a invenção do futebol moderno. 2017. Disponível em: <http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/the-ball-is-round-capitulo-2-o-jogo-mais-simples-gra-bretanha-e-invencao-do-futebol-moderno/>. Acesso em 24. Maio. 2017.

 

DAMO, Arlei. S. Do fosso ao selfie. Disponível em: <http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/do-fosso-ao-selfie/>. Acesso em: 03. Nov. 2017.

 

FIGOLS, Victor de Leonardo. Contra o Futebol Moderno – 1# O Futebol Moderno. 2014. Disponível em: <http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/contra-o-futebol-moderno-1-o-futebol-moderno/>. Acesso em: 18. Abril. 2017.

 

INDURSKY, Freda. A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, Freda; MITTMANN, Solange; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (Orgs.). Memória e história na/da análise do discurso. Campinas, Mercado de Letras, 2011. p. 67-89.

 

IANNE, Fernando. A história do futebol pelo mundo – crenças, culturas, religiões e violência. 2008. Disponível em: <http://universidadedofutebol.com.br/a-historia-do-futebol-pelo-mundo-crencas-culturas-religioes-e-violencia-2/>. Acesso em: 24. Maio. 2017.

 

MACHADO, R.H.B. Os cinquenta anos do golpe no Brasil e alguns outros dizeres: breve tratamento do conceito de Memória Discursiva e sua importância para a análise do discurso pecheuxtiana. 2014. Disponível em: <http://www.africaniasc.uneb.
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MASCARENHAS, Gilmar. Estádios de futebol: objeto de desejo, de disputas e (cada vez mais) de estudos. Disponível em: <http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/estadios-de-futebol/>. Acesso em: 05. Nov. 2017.

 

MORRISON, Toni. Racismo e Fascismo (1995). In: A fonte da autoestima ensaios, discursos e reflexões. Toni Morrison. Companhia das Letras, 2020.

 

ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001.

 

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.

 

PÊCHEUX, M. e FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975). In: Por uma análise automática do discurso uma introdução à obra de Michel Pêcheux. F. Gadet e T. Hak (org.). 3. ed. Campinas- SP – Editora UNICAMP, 1997.

 

SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. Tradução de Antônio Chelini et  al. 22. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

 

VILLELA, Mariana V. de Lara. Desafios do futebol brasileiro frente ao neoliberalismo. Disponível em: < http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/desafios-futebol-brasileiro-frente-ao-neoliberalismo/> Acesso em: 04. Maio. 2017.




[1] Saussure definiu a língua como sendo um sistema próprio, não comportando, portanto, influxos exteriores a este. A fala se caracteriza como a realização desse sistema, fechada aos fatores externos ao dizer.

[2]  Há, na AD, diferentes definições à memória discursiva. ORLANDI, 2001, determina a memória discursiva como os discursos outros, resgatados, que significam junto a um novo dizer, ou seja, um reservatório de ditos e significações anteriores. Utilizou-se, como embasamento, o conceito defendido por INDURSKY, 2011, p.87: “A memória discursiva é regionalizada, circunscrita ao que pode ser dito em uma FD”.

[3] Entendido aqui como os jogos praticados anteriormente às regulamentações implementadas pelos ingleses.

[4] A saber foram transformados em arenas para a copa do mundo os seguintes estádios: Maracanã (RJ); Mineirão (MG); Fonte Nova (BA); Machadão (RN), renomeado como Arena das Dunas; Beira-Rio (RS); Arena da Baixada (PR); Mané Garrincha (DF) e Castelão (CE). Foram construídas as arenas: Itaquera (SP); Amazônia (AM); Pernambuco (PE) e Pantanal (MT).

[5] Para maior conhecimento sobre as punições delegadas às torcidas e clubes são indicadas as reportagens do site globoesporte.com sobre a punição ao Corinthians após uso de sinalizadores por sua torcida: https://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/uso-de-sinalizadores-faz-corinthians-ser-punido-com-fechamento-de-setor-da-arena.ghtml e a respeito da proibição de seis meses, em 2013, para a entrada de torcedores organizados  do Clube Atlético Paranaense em estádios brasileiros após briga generalizada em jogo contra o Vasco em que não houve policiamento: http://globoesporte.globo.com/pr/futebol/times/atletico-pr/noticia/2013/12/torcida-organizada-do-atletico-pr-e-banida-dos-estadios-por-seis-meses.html . Salienta-se não ser foco deste estudo a análise dos discursos difundidos na mídia sobre as punições e comportamentos dos torcedores.



Recebido em 25 de novembro de 2020
Publicado em 12 de fevereiro de 2021


Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA, Daniel de Jesus. Condições de Produção, Memória e Interdiscurso no Futebol Moderno: Uma Análise Discursiva de Dizeres. Revista MultiAtual, v. 2, n. 2, 12 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.multiatual.com.br/2021/02/condicoes-de-producao-memoria-e.html