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Daniel de Jesus Oliveira
Licenciado em Letras
Língua Portuguesa e Literaturas – UNEB (Universidade do Estado da Bahia);
Especialista em Língua Portuguesa: oralidade e escrita – UNOESTE (Universidade
do Oeste Paulista); pós-graduando em Mídias na Educação – UESB
(Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia).E-mail: djo-1992@hotmail.com.
Resumo: Neste artigo se tem por objetivo aplicar os
pressupostos teóricos da Análise de Discurso de linha francesa, que tem como
seu principal expoente Michel Pêcheux, com vistas a empreender análise sobre
dizeres que margeiam o futebol dito moderno (entendido como sendo um construto
do sistema capitalista que se apropriou do esporte para a obtenção de lucro,
com mídias, mercado e apropriação de espaços de torcer) em uma perspectiva
discursiva. Entre os pressupostos teóricos que se filiam a Pêcheux, destacam-se
neste trabalho as memórias (discursivas), condições de produção e os
interdiscursos que atravessam os dizeres analisados, além de suas condições de
produção. Desta forma, constitui-se o estudo acerca dos aspectos discursivos
nos dizeres: “Não ao futebol moderno!”, “Ódio eterno ao futebol moderno” e o “O
esporte do povo não pode ser da burguesia”, como o objeto desta pesquisa.
Identificar os motivos que causam a emergência desses dizeres e os aspectos
discursivos neles presentes, como suas formações ideológica e discursiva,
englobam a problemática analisada. Termina-se, com o resultado em um gesto de
interpretação, identificando os condicionantes que margeiam a emergência dos
dizeres analisados, em contrariedade e resistência à cristalização do futebol
moderno, mercadológico. Como fontes de pesquisa, além de Pêcheux (1997), o
trabalho se referencia principalmente nas contribuições de Orlandi (2001 e
2006) e Indursky (2011) quanto à Análise do Discurso e do portal Ludopédio nas contribuições e
entendimentos acerca do futebol moderno.
Palavras-chave: Futebol
moderno; Interdiscurso; Memória discurso; Condições de produção.
Abstract: This article aims to apply the theoretical assumptions of Discourse
Analysis of the French line, whose main exponent is Michel Pêcheux, with a view
to undertaking analysis on sayings that border the so-called modern football
(understood as being a construct of the capitalist system that appropriated the
sport for profit, with media, market and appropriation of spaces to cheer) in a
discursive perspective. Among the theoretical assumptions that affiliate with
Pêcheux, in this work the (discursive) memories, conditions of production and
interdiscourses that cross the analyzed sayings, in addition to their
conditions of production stand out. In this way, the study about the discursive
aspects in the words: “No to modern football!”, “Eternal hate to modern
football” and “The sport of the people cannot belong to the bourgeoisie”, as
the object of this research. Identify the reasons that cause the emergence of
these sayings and the discursive aspects present in them, such as their
ideological and discursive formations, encompass the analyzed problem. It ends,
with the result in a gesture of interpretation, identifying the constraints that
border the emergence of the analyzed words, in contradiction and resistance to
the crystallization of modern, marketing football. As sources of research, in
addition to Pêcheux (1997), the work refers mainly to the contributions of
Orlandi (2001 and 2006) and Indursky (2011) regarding Discourse Analysis and
the Ludopédio portal in the contributions and understandings about modern
football.
Keywords: Modern football; Interdiscourse; Speech memory; Production conditions.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, busca-se aplicar os pressupostos teóricos
da Análise de Discurso filiada a Michel Pêcheux, com vistas a estudar dizeres
que margeiam o dito futebol moderno em uma perspectiva discursiva. Entre os
pressupostos teóricos que se filiam a Pêcheux, destacam-se as condições de
produção, memória discursiva e os interdiscursos que atravessam os dizeres
analisados.
O estudo acerca dos
efeitos de sentido que marcam os ditos:
“Não ao futebol moderno”, “Ódio eterno ao futebol moderno” e “O esporte do povo não pode ser da
burguesia” configura-se como o objeto desta pesquisa. Identificar os
motivos que causam a emergência desses dizeres e os aspectos discursivos neles
presentes englobam o problema analisado. Tem-se como hipótese para a
problemática apresentada que a formação ideológica que permeia a
realização desses dizeres é de posicionamento político e social contrária às
segregações e injustiças sociais comuns ao sistema capitalista, que, para
Morrison (1995) transforma o valor nos seres humanos, em detrimento da
humanidade e generosidade valorizam-se propriedades e lucro.
É tal formação
ideológica que, devido ao assujeitamento do sujeito discursivo a ela, coordena
suas memórias e formação discursiva, tendo ainda como condições à formação
desses discursos os últimos anos de protestos e mobilizações por diversas
questões de cunho social no país, como as relacionadas às novas mudanças
impostas ao futebol brasileiro, bem como a crescente utilização das redes
sociais como plataforma para essas reivindicações.
O objetivo da
pesquisa se centra em identificar os efeitos de sentido apreendidos, bem como
determinar os aspectos discursivos dos dizeres analisados, com enfoque nas suas
memórias, condições de produção e na identificação de interdiscursos que os
imbricam. Este artigo é resultado de uma pesquisa qualitativa, de tipo
bibliográfica, pois utilizou-se de bibliografia já existente para estudo do
objeto, que se fez também exploratória, com a identificação de aspectos
fundamentais para a emergência de uma materialidade discursiva, explorando-a.
2
A ANÁLISE DE DISCURSO
Entende-se como Análise do Discurso - ou
apenas AD - de linha francesa a disciplina da linguística incumbida de estudar
a linguagem em sua prática, marcada pelas interações sociais. A AD fora
constituída no continente europeu e teve em Michel Pêcheux seu principal
expoente, tendo como bases teóricas a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise.
Desse diálogo foram trazidos à tona conceitos básicos à disciplina, como
discurso - prática discursiva realizada por um sujeito, marcado pelas relações
sociais externas à fala-; sujeito - do discurso, afetado pelas relações
sócio-históricas e pelo inconsciente-; e ideologia - coordenadora das memórias
e do que pode e deve ser materializado como discurso pelos sujeitos. A luta de
classes e o aparelhamento ideológico do Estado atuam diretamente nas
ideologias, posicionamentos.
Na Análise de Discurso se tem como objeto
central de estudo não apenas a língua, mas esta enquanto construtora de
sentidos, constituídos a partir da relação existente entre sujeito e história.
Como discurso entende-se a prática da linguagem, distancia-se, para tanto, dos
conceitos de língua e fala apresentados por Saussure, em Curso de Linguística Geral[1].
É a partir da realização discursiva que são evidenciados os sentidos existentes
num discurso que, por sua vez, apenas têm efeito(s) a partir de relações
históricas, exteriores à fala, que passa a ser entendida como formulação,
produção discursiva.
Ao se analisar um discurso é preciso
empreender tal análise compreendendo que, segundo Orlandi, (2001.p. 32), “há
uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo, que é o que existe entre o
interdiscurso e o intradiscurso”. Entende-se
como interdiscurso o eixo no qual é possível encontrar todos os dizeres já
proferidos (ou também esquecidos), que representam o que é possível dizer
acerca de determinada temática. Já o intradiscurso é definido como sendo o eixo
em que ocorre a formulação, um momento específico em que se materializa um
dizer específico que, por sua vez, só pode ser dito, pois há abertura, na
esfera do interdiscurso, para essa possibilidade.
Assim sendo, em todo discurso dado diversos
discursos outros influem à construção dos sentidos ali inferidos, havendo ainda
a memória discursiva[2], que
coordenada pela formação discursiva dominante resgata - ou esquece, apaga -
para a formulação de um dito os sentidos permitidos por ela.
É válido destacar que o sujeito do discurso ao
formular os seus dizeres nem sempre o faz tendo consciência de que esses
dialogam com discursos outros, nem que estes (ou a ausência deles) significam
junto ao seu dizer. Tem-se, portanto, o que é compreendido como esquecimento
(s). Para Orlandi (2001, p. 35) há dois esquecimentos, um na esfera do dizer,
esquecimento da enunciação, pois o sujeito do discurso se considera como dono
deste, não se atendo aos interdiscursos que ali influem. O outro (de número um)
é da esfera do inconsciente e é determinado por como se é afetado pela
ideologia, esquecimento ideológico.
Destacam-se ainda outros dois pressupostos
teóricos básicos à Análise de Discurso, são eles as formações ideológica - FI -
e também discursiva - FD. Quanto à FI: “Cada formação ideológica constitui um
conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’
nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com
as outras” (PÊCHEUX E FUCHS, 1997, p. 166).
Observa-se que a formulação de um discurso
qualquer só se dá, pois há, no sujeito do discurso, determinada ideologia
dominante, que irá definir quais sentidos podem ser instaurados pela FD, logo,
evidencia-se que há, por parte do sujeito do discurso, um assujeitamento frente
à formação ideológica que coordena o que pode ser formulado por ele como dizer,
pois “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica
dada – ou seja, a partir de uma posição dada e em uma conjuntura
sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2001, p.
43).
Por fim, cada discurso é afetado também pelas
condições sociais que circundam os sujeitos dos discursos, são essas as
condições de produção. A AD identifica a existência de duas condições de
produção, sendo elas a ampla, ou histórica, e as condições imediatas, marcadas
pelo contexto do momento de produção do discurso.
3 INTERDISCURSO
E MEMÓRIA DISCURSIVA: UM POUCO DE HISTÓRIA
Na construção de significados se nota a
importância dos ditos já existentes, que se materializam e significam junto a
cada novo dizer, pois através deles o que é formulado pode ser inserido no campo
do dizível.
Assim, a memória e o interdiscurso têm papel
fundamental no processo discursivo. Essa memória, uma memória discursiva,
define-se como sendo aquela responsável por resgatar os sentidos pré-existentes
à execução do intradiscurso, no entanto esses sentidos têm de estar alinhados à
formação discursiva acionada no momento da formulação do dito.
[...] se a memória discursiva se refere aos enunciados que se
inscrevem em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os
sentidos, como é o caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela
Forma-Sujeito no âmbito de uma formação discursiva. Mas não só: a memória
discursiva também diz respeito aos sentidos que devem ser refutados. Ou seja:
ao ser refutado um sentido, ele o é também a partir da memória discursiva que
aponta para o que não pode ser dito na referida FD (INDURSKY, 2011, p 87).
Logo, observa-se que, como explicitado
anteriormente, o interdiscurso fornece ao intradiscurso sentidos já existentes
àquele eixo temático, entretanto, sem estar restrito apenas a uma única
formação discursiva. Nota-se:
[...] tanto memória
discursiva como interdiscurso dizem respeito à memória social, mas não se
confundem. Há diferenças importantes entre as duas noções. A memória discursiva
é regionalizada, circunscrita ao que pode ser dito em uma FD e, por essa razão,
é esburacada, lacunar. Já o interdiscurso abarca a memória discursiva referente
ao complexo de todas as FD. Ou seja, a memória que o interdiscurso compreende é
uma memória ampla, totalizante e, por conseguinte, saturada. (INDURSKY, 2011, p
87-88).
Estabelecidos tais conceitos, fundamentais
para este trabalho, passa-se à análise de construções significativas que
margeiam o dito futebol moderno, para tanto é necessário um resgate histórico,
analisando desde a possível invenção do esporte aqui analisado.
3.1 BREVE HISTÓRICO ACERCA DO FUTEBOL
Não é missão das mais fáceis reconstruir os
caminhos históricos seguidos pelo futebol no mundo. São diversas e díspares
ideias apresentadas acerca dos caminhos trilhados por esse esporte. Neste
trabalho, a perspectiva histórica a ser adotada é a das raízes chinesas para o
surgimento do futebol (nota-se, na história reproduzida pelo senso comum, o
apagamento da história do futebol anterior à Inglaterra), no que é definido
pelo inglês David Goldblatt como “pré-história do futebol”.
Segundo o pesquisador inglês, os chineses,
ainda no período das dinastias, foram os primeiros a praticar jogos que
utilizassem os pés e um objeto redondo em sua prática. Vejamos a citação a
seguir, feita pelo pesquisador brasileiro Marcos Alvito, responsável por
traduzir e resenhar o livro de Goldblatt, “The
ball is round: a Global History of Football”, tendo seu trabalho publicado
em série de artigos no portal Ludopédio.
O capítulo 1
chama-se Chasing Shadows: the Prehistory of Football (Perseguindo
sombras: a Pré-História do futebol). Ele começa examinando o cuju,
jogo amplamente praticado na Dinastia Han (206 a.C. a 221 d.C.), cujo nome pode
ser traduzido como chute-bola. O jogo provavelmente foi praticado
antes, mas somente sob a Dinastia Han é que foi formalizado e organizado como
um esporte. A bola consistia numa esfera de couro costurada e recheada com pele
ou penas. Confrontavam-se dois times em um campo com dois gols marcados nas
extremidades. Os chutes na bola eram importantes, mas ela também era carregada
com as mãos e era permitido derrubar os adversários com força. O jogo era
benquisto na Corte Imperial mas era sobretudo praticado no Exército onde era ao
mesmo tempo uma forma de treino e de recreação. Nas dinastias subsequentes o
jogo continuou a ser praticado mas mudou a forma da bola, que passou a ser oca,
o que facilitava o controle mas dificultava o jogo mais físico. De qualquer
forma, o cuju irá desaparecer em meados do século XVII,
durante a Dinastia Ming (1368-1644). (ALVITO, 2017).
Percebe-se, portanto, que ainda no século III,
depois de Cristo, já havia registros da existência de esportes praticados com
os pés, no entanto, ao analisar-se a forma de jogo e as regras existentes, ou
até mesmo a ausência delas, nota-se um distanciamento entre o cujo e o futebol popularizado
posteriormente. Cabe investigar, no entanto, as causas e origens dessas
rupturas, assim como apontá-las.
Goldblatt apresenta a tese de que a prática do
cujo fora adaptada e disseminada
também em territórios conquistados militarmente pelos chineses, disseminando,
assim, de maneira não baseada ainda em regras universais para a prática
esportiva, o cujo. Vê-se.
Ao que
parece, os chineses acabaram levando o cuju para as terras
alcançadas por eles militar ou comercialmente. Um indício disso é o sepak
raga, jogo praticado na Malásia quatrocentos anos atrás e que pode ser
descrito como uma mistura de futebol e voleibol. Embora os japoneses não gostem
de admitir, também o kemari é derivado da China. Começou a ser
praticado no século XII, sobretudo dentre a nobreza. Quatro árvores,
preferencialmente pinheiros, demarcavam o campo, que era pequeno, um quadrado
com seis a sete metros de largura. Oito jogadores participavam, dois em cada
árvore. A bola era oca, leve e feita de pele de cervo, geralmente tingida de
branco ou amarelo. O cortesão com o status mais alto chutava a bola para o alto
e o objetivo era mantê-la no ar o mais tempo possível. Às vezes havia a
contagem formal dos chutes e o árbitro poderia conceder pontos extras para
chutes impressionantes ou com mais estilo (ALVITO, 2017).
Para complementar ainda mais este aporte
histórico acerca da pré-história do futebol, é preciso apontar também a prática
de jogos similares ao futebol visualizado hoje no continente americano, mais
precisamente na Mesoamérica, onde hoje se localizam o México, a Guatemala,
Belize e Honduras. É válido destacar que, segundo o pesquisador inglês, em
diversas outras culturas antigas existiram práticas esportivas coletivas, no
entanto estas analisadas são as principais, por se configurarem como sendo, por
proximidade nos procedimentos, as mais alinhadas ao futebol surgido à
modernidade. Como é possível observar na citação a seguir.
[...] Na Mesoamérica, o jogo era praticado por
todas as classes sociais. O significado do jogo relacionava-se aos complexos
sistemas astronômicos e ao calendário que organizavam estas sociedades. A
divindade protetora do jogo era Xolotl que aparece no céu noturno como Vênus e
os jogadores aparecem nos murais como representando outros corpos cósmicos. O
jogo era geralmente acompanhado ou precedido por apresentações teatrais e havia
um animado mercado de apostas. Inimigos vencidos na guerra primeiramente
jogavam antes de terem suas cabeças cortadas ou seus corações arrancados. Os
espanhóis proibiram o jogo. O que nem era necessário diante do genocídio dos
povos da Mesoamérica através de doenças e do processo de escravização. Mesmo
assim, no noroeste da província de Sinaloa, no México, uma variante do jogo,
chamada de ulama, ainda sobrevive (ALVITO, 2017).
É possível apreender das práticas
Mesoamericanas influxos ainda hoje visualizados no esporte. Como por exemplo a
existência do mercado de apostas, que segue os passos de cada partida de
futebol em qualquer canto do mundo, bem como a relação com as divindades. Futebol,
fé, devoção e promessas estão longe de deixarem de constituir uma simbiose,
basta apenas observar algumas comemorações de jogadores e torcedores após a
feitura de um gol, ou mesmo antes da realização de partidas.
Enfim, ainda em seu período pré-histórico, há,
no continente europeu, relatos de práticas esportivas similares às
anteriormente apresentadas.
O futebol, ou ao menos sua primeira forma, irá
nascer no noroeste da Europa, na opinião do autor sobretudo junto às sociedades
célticas, que de alguma forma mantiveram algum grau de autonomia diante da
cultura dominante na Idade Média. Dentre eles durante toda a Idade Média foram
praticados jogos de larga escala, envolvendo dois grupos a disputar uma bola a
ser levada de um lugar para o outro, sem muitas regras ou restrições.
Normalmente os confrontos envolviam dois distritos ou duas aldeias, com a bola
sendo disputada pelos campos abertos que os separavam. Às vezes os adversários
também podiam ser bairros diferentes, grupos de idade distintos ou até casados
e solteiros. Na Cornualha havia o hurling e no sul de Gales
o knappen. No início da Idade Média o futebol era tão popular e
difundido que diversos reis emitiram éditos tentando banir, controlar ou
restringir a prática. Era muito violento, com contusões e ferimentos abundantes
e mortes relativamente frequentes. Dentre as cidades que tentaram proibir o
jogo estão algumas que hoje são verdadeiros templos do futebol: Halifax,
Leicester, Manchester e Liverpool. As regras variavam de local para local, as
versões eram muitas. De qualquer maneira, tanto no campo quanto na cidade, o
esporte era adorado pelas camadas populares (ALVITO, 2017).
O que se observa acerca do futebol, a partir
do século XIX, é o caminho contrário ao que fora trilhado pelo esporte de
outrora, no período pré-futebol. Para compreender o contexto em que se insere
esse projeto é preciso entender também as mudanças que ocorriam à época, não
apenas no que tangia ao jogo, mas também ao seu exterior. Como destacado por
Alvito, o futebol em sua primeira forma, nascido no noroeste europeu, era
adorado pelas camadas populares, tanto urbanas quanto camponesas, entretanto
essa característica do esporte é alterada a partir do século XIX. Nota-se:
[...] Este jogo, que podemos chamar de futebol
das multidões, estava em forte declínio no início do século XIX. De um lado a
religião Puritana condenava o jogo como ímpio e proibia toda e qualquer
atividade aos domingos. Os metodistas criticavam a desordem social, a
periculosidade e a violência descontrolada do futebol. A nova classe dos
industriais e os homens de negócio em geral temiam pela propriedade e pela
disciplina de trabalho. Até mesmo os artesãos especializados, desejosos de
marcar uma distância social entre si e o proletariado rural ou a nova massa de
trabalhadores chegada às cidades, condenavam o jogo como bárbaro e idiota. Em
inúmeras cidades e regiões o futebol será proibido por lei. Com uma tal gama de
opositores, não é de se estranhar que ao final do século XIX o futebol informal
e tradicional estivesse não somente em declínio mas verdadeiramente
desaparecendo (ALVITO, 2017).
Percebe-se então que o futebol, jogado até o
momento pelas camadas mais populares, fora estigmatizado pela nova elite
industrial, principalmente na Inglaterra, que dominara as inovações
tecnológicas surgidas no período, advindas junto à revolução industrial. Entretanto
um fenômeno é fundamental para a compreensão da transformação a que fora
submetido o futebol em território inglês, a apropriação do esporte feita pelas
escolas públicas britânicas, escolas estas destinadas à elite local:
[...]os rapazes das “public schools”
descobriram o futebol tradicional, jogado nas ruas, que com seu caráter
anárquico e violento, logo caiu no gosto dos estudantes.[...] Foi assim que o
futebol logo se tornou uma febre entre os alunos das escolas mais exclusivas da
Inglaterra. Em Eton, a escola mais tradicional e prestigiosa do país, já se
jogavam duas formas de futebol desde a metade do século XVIII. Em cada escola
havia uma regra própria, inclusive adaptando o jogo ao espaço disponível.
Concomitantemente a isso, surge uma proposta de reforma do ensino das “public
schools” [...] Foi aí que entrou o futebol. Não havia como educar os rapazes
sem ter um mínimo de controle sobre eles. Quando a direção da escola e os
professores começaram a organizar e coordenar os jogos, passaram a estar novamente
no topo de uma hierarquia, que tinha ainda os alunos mais velhos e terminava
nos calouros. Cada um com seu papel. Ao mesmo tempo, o futebol desgastava os
estudantes, queimando seu excesso de energia e hormônios (ALVITO, 2017).
Por fim, é a partir da apropriação do futebol,
para inseri-lo no currículo escolar das escolas de elite, que foram observadas
as primeiras sistematizações e definições de padrões e regras para o futebol,
potencializadas nos anos seguintes, com a criação, em 1863, da Football Association -FA- bem como, em
1871, da FA Challenge Cup, primeiro
torneio oficial de futebol no mundo e ainda hoje existente. Tais acontecimentos
consolidaram a aproximação do modo como era anteriormente jogado o futebol, de
forma totalmente amadora e sem maiores preocupações, à concepção que se tem do
futebol praticado por todo o mundo hoje, transformando-o.
[...] na Inglaterra surgem as primeiras
regulamentações, principalmente no que se refere ao número de jogadores.
Determinaram o tamanho de campo de jogo (120×80 metros). Surgem os gols, que
são dois postes com um metro de largura e se chamavam arcos, por isso os
goleiros eram chamados de arqueiros. A bola era de couro e o gol era validado
quando a bola passava por entre os arcos (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1987;
DUARTE, 1994. Apud IANNI, 2008).
É importante salientar que a introdução da
elite inglesa à prática do futebol e a regulamentação deste não afastaram as
camadas mais populares, como a classe operária britânica, do jogo, fora notável
a massiva presença desses nos torneios iniciais de futebol ingleses, embora
tendo seu desempenho prejudicado em comparação aos jovens provindos das escolas
da elite, adaptados ao esporte regido por regras desde as aulas de educação
física e sem ter de cumprir exaustivas cargas de trabalho nas indústrias. No
entanto, não foi preciso muito tempo para que a popularização e paixão pelo
esporte fossem amplamente disseminadas pelos mais pobres:
[...]entre 1840 e 1870 o jogo folclórico,
anárquico e desorganizado foi formalizado e codificado nas public
schools com propósitos pedagógicos, tornando-se o esporte preferido de
uma juventude de “bem-nascidos”. No último quartel do século XIX, o futebol irá
passar por outra enorme transformação: será amplamente adotado pela classe trabalhadora,
que doravante vai constituir a massa de jogadores e de espectadores do novo
esporte. Goldblatt chega a dizer que os trabalhadores “colonizam” o futebol. (ALVITO, 2017).
O novo conceito apresentado para o esporte
passa a simbolizar o futebol, na Inglaterra, sendo denominado de Football recebe também, em fase
posterior, o título de futebol moderno. No entanto, no perpassar dos séculos,
esta não é a única acepção para o termo, ao qual emergiram significados outros.
Vê-se:
Existem pelo menos três definições do que vem
a ser esse futebol. A primeira delas remete ao século XIX, quando o futebol
ainda estava surgindo enquanto prática esportiva e longe de ser o que
conhecemos hoje. Em 1863, após a fundação da Football Association (FA), as
regras do futebol foram sistematizadas a partir do jogo praticado nas Public
Schools britânicas. Posteriormente, para diferenciar esse novo futebol das
práticas semelhantes, foi atribuído o termo Futebol Moderno. Assim, o novo
futebol, organizado e sistematizado em regras, passaria a ser visto como
moderno, enquanto as outras práticas semelhantes passariam a ser vistas como um
futebol primitivo[3]
(FIGOLS, 2014).
Para Figols (2014) há ainda outras duas
acepções que emanam sentidos diversos ao dizer futebol moderno. O Sentido
segundo se condiciona a partir da copa do mundo de futebol de 1974, ocasião em
que as seleções da Holanda e Alemanha apresentam ao mundo técnicas para o jogo
coletivo até então desconhecidas da comunidade mundial. Segundo Figols, essa
modalidade técnica apresentada foi chamada pelos analistas como futebol total,
entretanto, não demorou muito para que emergisse outra nomenclatura, sendo
denominada, posteriormente, como futebol moderno.
Já a última construção significativa para o
dizer futebol moderno:
O terceiro momento em que o termo Futebol
Moderno apareceu foi nos anos 1980, quando o futebol passou por profundas
mudanças. O processo de espetacularização do esporte tem início muito antes
dessa década, mas foi nos anos 1980 em que essa espetacularização tomou conta
do futebol. Na verdade, quem tomou conta do futebol foram as televisões.
Acompanhando esse processo de espetacularização do esporte está a mercantilização
do futebol. Os clubes abriram as suas fronteiras regionais e foram em busca de
mercados consumidores. A internacionalização dos clubes foi um fator decisivo
para o futebol conquistar novos territórios e, consequentemente, novos
mercados. Aqui fica evidente o papel da televisão na difusão global dos clubes.
Em outras palavras, o futebol passou a ser visto como um produto, um produto da
indústria do entretenimento, um produto das televisões (FIGOLS, 2014).
É esta terceira significação do termo que é
analisada neste trabalho, sendo esse dito futebol moderno possível causa
principal da emergência dos dizeres ‘não
ao futebol moderno’, ‘o esporte do
povo não pode ser da burguesia’ e ‘ódio
eterno ao futebol moderno’ que compõem o corpus desta análise. É contra tal modelo de futebol que
torcedores, organizados ou independentes, mobilizam-se, unindo-se em redes
sociais, ou criando movimentos nas próprias arquibancadas a fim de expressarem
as suas reivindicações, desses espaços emergem os discursos analisados no
trabalho.
Portanto, é possível identificar, no
estabelecimento de novas formulações ao dizer futebol moderno, o fenômeno da
ressignificação, “uma quebra do regime de regularização dos sentidos. Isto se
dá porque o sujeito do discurso pode contra-identificar-se com algum sentido
regularizado ou até mesmo desidentificar-se de algum saber e identificar-se com
outro” (INDURSKY, 2011, p. 71),
possível apenas através do diálogo entre interdiscurso e memória.
O interdiscurso atua por comportar todos os
ditos, não ditos, apagados e esquecidos que constroem a rede de memória
relacionada ao eixo temático futebol moderno (bem como o não moderno). Já a
memória discursiva é acionada no momento em que irrompe à materialidade um
sentido novo a um dito que em outro dado momento possuiu outra significação,
por ela possibilitar a construção de sentidos a partir de formação discursiva
nova, uma nova forma-sujeito, como aponta Indursky:
Os sentidos, à força de se repetirem, podem
acabar por se modificar, de modo que as redes discursivas de formulação,
formadas a partir de um regime de repetibilidade, vão recebendo novas
formulações que, ao mesmo tempo que vão se reunindo às já existentes, vão
atualizando as redes de memória (INDURSKY, 2011, p. 76).
Cita-se a pesquisadora novamente para que se
defina que “Ou seja, os sentidos se movem ao serem produzidos a partir de outra
posição-sujeito ou de outra matriz de sentido” (INDURSKY, 2011, p.77). Nota-se,
portanto, como as formações ideológica e discursiva atuam junto ao sujeito do
discurso, possibilitando a transferência de sentido de determinado dizer
(anteriormente proferido a partir de outra posição-sujeito e inserida em outra
formação discursiva), para que possa transportar-se a uma nova matriz de
sentido, evocada por uma posição-sujeito divergente da primeira, inserindo-se
em uma nova formação discursiva.
É essa nova formação discursiva que evoca a
memória discursiva presente no discurso, que resgata o que pode ser
materializado como dizível, por isso se fez necessária a ressignificação do
dizer futebol moderno, para adequá-lo a uma nova situação (futebol marcado pelo
consumo, mercadológico e midiático) e também a outra posição-sujeito (nos
discursos analisados, ideologicamente contrária às alterações sociais que
afetam o futebol moderno). A memória discursiva, portanto, fora fundamental
para o estabelecimento dos sentidos inferidos no discurso ressignificado por,
ideologicamente, condicioná-lo a partir da FD.
É possível registrar que ao formularem-se os
dizeres em contrariedade à concepção de futebol moderno (mercadológico), faz-se
diante de uma memória discursiva diferente da que possibilitou outros sujeitos
a materializarem alguma das duas outras significações existentes para o termo,
já que é observada nela a negação e contrariedade às transformações impostas ao
futebol; não ao processo de criação de regras e sistematização do esporte
(sentido primeiro de futebol moderno), mas sim contra a mercantilização,
elitização de estádios e interesses cada vez mais comuns à sociedade de
consumo, como as televisões como detentoras dos direitos sobre os jogos.
Assim, é possível evidenciar a construção de
novas significações apenas possível pela alternância de formações e memórias
discursivas na materialização do dito futebol moderno e dos que emergem a
contrariá-lo.
4 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO: UM GESTO DE
INTERPRETAÇÃO
Ao se trabalhar com a Análise de Discurso, por
compreender a linguagem em sua exterioridade, marcada pelo histórico e social,
faz-se necessário investigar as condições externas ao discurso que atuam na
formulação de cada dizer, bem como a memória (e interdiscurso) e a ideologia.
Levando em conta que o homem na sua história
considera os processos e as condições de produção da linguagem, pela análise da
relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as condições em
que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar a regularidade da linguagem
em sua produção o analista de discurso relaciona a linguagem à sua
exterioridade (ORLANDI, 2001, p. 16).
Essas condições de produção, citadas por
Orlandi, referem-se aos contextos externos ao dizer que atuam e possibilitam
sua emergência. Há, sob a égide da Análise de Discurso, duas condições para que
se possa formular um discurso, uma denominada de histórica - ou ampla - que
contempla todas as interações sociais que vêm a significar em um dizer, abarcando
inclusive todos os ditos anteriores a ele. A outra condição de produção é
denominada como imediata, por referir-se a tudo aquilo que estabelece sentidos
no momento da emergência de determinado dizer. Busca-se, com a condição
imediata, ater-se a tudo aquilo que cerca e pode significar em um discurso no
seu momento de formulação.
É ainda
Orlandi quem define que:
O que são pois as condições de produção? Elas
compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz
parte da produção do discurso. A maneira como a memória “aciona”, faz valer, as
condições de produção é fundamental [...] Podemos considerar as condições de
produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o
contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as condições de
produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico (ORLANDI, 2001, p. 30).
A pesquisadora salienta que as condições de
produção de dado discurso se fazem a partir do sujeito do discurso e da
situação em que ocorre a formulação desse dito, sendo impossível a separação
entre eles.
Assim, investigar as condições de produção -
imediatas e amplas - que trazem à emergência os ditos em contrariedade ao
modelo de futebol moderno se faz relevante. Passa-se, portanto, a essa investigação,
analisando-se os sujeitos dos discursos e contextos em que os ditos vieram à
materialidade.
4.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO
É evidente a importância que têm adquirido as
mídias sociais, nos últimos anos, como plataformas de debates. Pode-se nessas publicar,
comentar, compartilhar dizeres relacionados a qualquer temática. Esta
possibilidade de interação faz com que, cada vez mais, as plataformas digitais
se insiram como centros onde é possível informar-se e comunicar a respeito do
que for mais cabível à formação ideológica do usuário, aliando-se a isso o fato
de que é possível, ainda, unir-se àqueles que possuem visões de mundo e
interesses alinhados e formar grupos. Assim, informa Recuero:
A formação de redes sociais antecede a
internet, porém, com a Web, as redes ganham novas características. Na Web, elas
se expressam em sites e são formadas por “um conjunto de dois elementos: atores
(pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações
ou laços sociais)” (RECUERO, 2009, p. 24 apud ALCANTARA, 2014, p. 109).
Visto isso, observa-se a insurgência, nos
últimos anos, de grupos e comunidades nas redes sociais que questionam os
caminhos a que fora direcionado o futebol no Brasil. Páginas no facebook como O canto das torcidas; Jogo dez da noite não; Futebol mídia e
democracia; Brigada Marighella-EC Vitória, entre outras, fazem dessa rede
meio principal para oposição ao modelo de futebol moderno, utilizando-se dos
dizeres ‘não ao futebol moderno’, ‘o esporte do povo não pode ser da burguesia’
e ‘ódio eterno ao futebol moderno’.
É válido destacar que com a escolha do Brasil
como sede para a copa do mundo de futebol do ano de 2014, o país fora obrigado
pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), entidade responsável pela
organização do evento, a cumprir uma série de exigências para adequar-se ao
padrão exigido pela entidade máxima do futebol. Este padrão fez com que
diversos estádios brasileiros fossem adaptados, reformados, fugindo
completamente às suas características e diversas arenas fossem construídas[4].
O “padrão FIFA” é um conjunto de recomendações
endereçados aos países sedes das competições organizadas em parceria com esta
entidade – as Copas do Mundo de futebol masculino, sobretudo – e boa parte delas
estão dirigidas aos estádios. Todavia, é uma ilusão imaginar que seus efeitos
sejam limitados aos eventos FIFA, pois tais recomendações acabam performando o
futebol de espetáculo como um todo. A preocupação com segurança, conforto e
rentabilidade (este item não é tão explícito no tal Caderno de Encargos) dos
estádios, como se sabe, norteia as recomendações (DAMO, 2017).
Assim, o que vinha a ser moderno se demonstrou
uma ruptura às tradições brasileiras de arquibancada (esta constatação será
mais elaborada adiante). São notáveis, nos últimos anos, as diversas
transformações de estádios de futebol em arenas; as setorizações de espaços,
com entradas cada vez mais caras, que afastam os torcedores menos prestigiados
financeiramente do hábito de acompanhar, das arquibancadas, as partidas de
futebol; bem como séries de proibições interferem diretamente no hábito e modos
de torcer, como as constantes proibições de uso de sinalizadores, bandeiras,
faixas, uniformes e até mesmo de acesso de torcedores organizados às arenas e
estádios, exaustivamente identificados como vândalos e desordeiros, à margem do
bom comportamento próprio às novas arenas[5].
A reinvenção dos estádios (“arenização”, como
prefere nosso jovem autor) não se reduz apenas a uma arquitetura sofisticada e
monumental, alvo de ufanismo e promotora de mais um cartão postal em nossas
metrópoles. Impõe-se uma rotina altamente organizada, ao empobrecer a
sociabilidade historicamente construída no processo de apropriação desse espaço
público pelas massas urbanas. O atual “modelo FIFA” concebe o moderno estádio
como equipamento destinado a um público específico, “figurante”, seleto,
solvável, disposto a pagar caro por tecnologia, conforto e segurança. Um
público “familiar” e “ordeiro”, que vai ao estádio consumir o espetáculo e não
realizar tradicionais formas de protagonismo que não interessam ao novo modelo
hegemônico. Ainda no plano da retórica modernizadora, pretende-se um estádio
“civilizado”, em contraposição ao caos e à “barbárie” supostamente reinantes no
modelo anterior, considerado vulnerável a movimentos de massa incontroláveis e
sujeito à atuação de grupos sociais “perigosos” (MASCARENHAS, 2017).
Mascarenhas defende que o novo modelo de
estádios é construído “submetido aos
implacáveis princípios do gerenciamento técnico-empresarial. Gerenciamento que
visa “requalificar-revitalizar-refuncionalizar” o tradicional equipamento,
tornando-o mais rentável e, sem meias-palavras, mais bem frequentado”
(MASCARENHAS, 2017), explicitando as finalidades mercadológicas e seletivas do
futebol moderno e seu processo de reformulação dos estádios.
Para melhor compreender a relação existente
entre o fenômeno da arenização dos estádios afetados pelo padrão FIFA e o molde
comportamental imposto aos torcedores que os frequentam, alguns episódios
históricos são relevantes e merecem ser, brevemente, apresentados.
Vejamos primeiro o caso da Inglaterra, que
durante os anos de Thatcher no poder teve o futebol impactado por suas
políticas neoliberais. Seu governo conservador, com a flexibilização de leis
trabalhistas e a redução de gastos estatais acabou fortalecendo Londres como
centro financeiro e fechando várias fabricas, sobretudo nas cidades mais ao
norte. A conjuntura política econômica levou a indignação de trabalhadores
operários, que passaram a levar faixas de protestos aos jogos, travando assim
uma luta entre governo e algumas torcidas. Com as tragédias de Heysel (1985) e
Hillsborough (1989), Margareth Thatcher se aproveitou da situação para
criminalizar a torcida do Liverpool (cidade com forte movimento sindical de
fábricas) e promover reformas nos estádios, transformando-os em arenas e
extinguindo setores mais populares, além de impulsionar a criação da Premier
League em 1992, campeonato patrocinado até 2016 pelo Barclays Bank.
Voltando ao nosso cenário nacional, as faces
do futebol moderno ganharam força com a criminalização de torcidas e a vinda de
megaeventos. A copa do mundo trouxe o “padrão FIFA” ao Brasil, o que acelerou o
processo de “arenização” dos nossos estádios acompanhado da privatização
destes. No Rio de Janeiro temos um exemplo concreto que evidencia a relação de
um projeto excludente de cidade/estado, com um estádio elitizado (VILLELA,
Mariana V. de Lara, 2017).
Percebe-se que fora a Inglaterra a inventora
também do processo de arenização dos estádios, as reformas que excluíram
setores mais populares e afastaram os torcedores organizados, tidos como
extremamente violentos, esteve diretamente relacionada à transformação do
campeonato inglês em uma liga midiatizada, tendo seus direitos de transmissão
negociados por todo o mundo, além do citado patrocínio de um poderoso banco,
demonstrando as verdadeiras faces do futebol moderno.
É ainda no exemplo inglês que se pode perceber
a criminalização dos torcedores, responsabilizados por tragédias ocorridas em
estádios (estes anteriores ao processo de arenização), culminando na construção
de estigmatizações e estereótipos aos torcedores das camadas mais populares,
processo bastante similar ao que atualmente ocorre no Brasil, citado por
Villela e exemplificado anteriormente neste trabalho.
Contemporâneas às jornadas de junho de 2013,
surgiram no Brasil mobilizações como a ‘frente
nacional de torcedores’, ‘não vai ter copa’ e ‘copa para quem?’ que vieram a questionar os gastos com as
exigências a serem cumpridas para a realização do torneio. Nota-se que tais
mobilizações influem para que surjam à emergência, nas próprias manifestações,
dizeres múltiplos de questionamento a este aparelhamento mercadológico do
esporte e gastos bilionários com as obras de reforma e construção de arenas, em
detrimento de diversas áreas emergenciais do país.
4.2 SOBRE OS DIZERES: IDENTIFICANDO ALGUNS
PRESSUPOSTOS
Em dois dos dizeres analisados há referência
explícita ao futebol moderno, este, por sua vez, já houvera passado por
processos de inferência de sentidos novos através da história. Ao dizer ‘não ao futebol moderno’ ou ‘ódio eterno ao futebol moderno’, o sujeito
do discurso utiliza de sua memória discursiva para negar, odiar, o futebol
moderno. Pode-se inferir ainda que, desse modo, é apenas possível ao sujeito do
discurso negar ou odiar o futebol moderno por ter um posicionamento ideológico
contrário àquele que consolida a modernização do futebol como um produto, um
mercado, já que em AD tudo que pode ser dito é determinado por ele. Sendo o
futebol moderno, contrariado por esses dizeres, o reflexo do sistema
capitalista, que visa o lucro e vê no futebol uma geração de riquezas, tendo
nos milhões de torcedores consumidores, pode-se apontar que a formação
ideológica que permite a formulação desses dizeres é de contrariedade a esse
sistema vigente e já solidificado.
Imagem 1- Publicação no Facebook.
Fonte: página no facebook Brigada Marighella-EC Vitória
(2017)
Já ao se materializar o dizer ‘o esporte do povo não pode ser da
burguesia’ o sujeito discursivo apenas o pode fazê-lo condicionado pela
história, representada pela memória, pois o dizer dialoga diretamente com ela.
A significação construída a partir da formação discursiva presente é contrária,
não aceita, as novas condições impostas ao futebol no Brasil. Ao analisar-se a
história do futebol se nota que suas origens iniciais são sim burguesas, entretanto,
a popularização do esporte entre as camadas menos abastadas da sociedade não
tardou, popularização notável até a atualidade.
Imagem 2- Publicação no Facebook
Fonte: Fonte: página no facebook Brigada
Marighella-EC Vitória (2017)
Ao formular o dizer ‘o esporte do povo não pode ser da burguesia’ há, portanto, uma
de-significação - que “Para Orlandi, a de-significação traz a impossibilidade
de existência daqueles sentidos, como se eles não fossem possíveis.
Evita-se-os.” (MACHADO. 2014 p, 9)
- de sentidos que possam emergir como,
por exemplo, quanto às raízes burguesas do futebol.
Assim, é possível definir a posição deste
sujeito em uma FI contrária à burguesia, que não aceita a imposição de novos
costumes ao futebol brasileiro, definindo tais mudanças advindas ao futebol
moderno como burguesas, para atender apenas a parcela mais elitizada da
população. Ao defender que o esporte é do povo o sujeito discursivo resgata,
através da memória, o processo de apropriação e popularização do futebol feito
pelos trabalhadores fabris, iniciado, como o próprio futebol
regimentado-moderno, na Inglaterra.
4.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
No que trata às condições de produção dos
dizeres, objeto do referido estudo, passa-se às
considerações acerca delas, nas bases da AD, no sentido estrito e amplo, como
apresenta a estudiosa Orlandi (2006, p. 152): “dar conta da relação
linguagem/contexto, compreendendo-se em seu sentido estrito (situação de
interlocução, circunstância de comunicação, instanciação de linguagem) e no
sentido lato (determinações histórico-sociais, ideológicas, etc.)”. :
Quadro 1 – Condições de produção das sequências discursivas
CONTEXTO IMEDIATO |
CONTEXTO AMPLO |
·
As páginas
do Facebook ·
As pessoas
que fizeram as postagens com os ditos; quem criou a página; ·
O momento
em que as minorias começam a ter visibilidade quanto às afirmações que fazem;
·
O fato de
os dizeres terem sido postados numa página do Facebook e não em outro lugar. |
·
O
ciberespaço, a internet; ·
A sociedade
contemporânea e as novas interações; ·
O Facebook é uma rede social virtual
aberta. |
Fonte: elaborado pelo próprio autor.
Como contexto imediato à formulação dos dizeres se tem o Facebook, espaço em que se materializam
os dizeres, que surge, então, como condição para a formulação desses. O fato
desses dizeres terem sido proferidos (postados) nessa plataforma, não em outra
- a plataforma utilizada condicionou, no momento da formulação, os discursos a
partir dela propagados, que se moldaram às características dos ditos naquela
mídia - insere-se também como condicionante imediato aos discursos.
Ainda, as recentes mobilizações contrárias à transformação
dos estádios brasileiros em arenas, cobranças de preços elevados para
os ingressos, imposição de horários que não dialogam com a realidade da rotina
da maioria da população brasileira e de novos costumes ao torcedor brasileiro
também os são condicionantes, que têm nas redes digitais e, principalmente, nas
páginas analisadas, notoriedade.
Como contexto amplo é possível
identificar todos os ditos e não ditos que constituem o interdiscurso e são
resgatados pela memória discursiva dos sujeitos do discurso. É a partir dela
que emergem os sentidos, bem como por intermédio dela é possível resgatar o
modelo de futebol anterior ao que é, nesses dizeres, contestado. Portanto, a
crítica ao modelo econômico capitalista, que se cristalizou nas estruturas dos
clubes e entidades futebolísticas, responsáveis por gerir o futebol, como a
FIFA e CBF (Confederação Brasileira de Futebol), que se estabelecem a partir
deste modelo de futebol moderno com imensos ganhos financeiros, é também aqui
relevante.
Tem-se, por fim, na instância do
contexto amplo, o fato do Facebook
ser um espaço público, rede virtual aberta, sendo possível acesso a qualquer um
que esteja conectado à internet e cadastrado no site. O ciberespaço, ou seja, a
internet, também faz parte do contexto amplo. Nota-se que a página Facebook está inserida dentro da rede,
internet, como diversas outras, a amplitude abarcada pelo ciberespaço é,
portanto, um contexto amplo, enquanto as páginas do Facebook anteriormente citadas instauram-se como imediatas à materialidade
discursiva.
Ante o exposto, as relações
sociais estabelecidas historicamente são fundamentais à construção das
significações postas em um dado discurso. As alterações nos mecanismos de
comunicação humana também são inseridas no campo dos condicionantes amplos à
produção do dizer. É notável que no decorrer da história da humanidade a
sociedade tem alterado os modos como são estabelecidas as relações,
adequando-se aos contextos de cada época. Assim sendo, no atual modelo de
sociedade contemporânea, diversas alterações ocorreram na comunicação humana,
concretizando-se modelos novos para a interação, como a internet e suas
múltiplas possibilidades interacionais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se neste artigo fazer uma leitura de
discussões socialmente relevantes à sociedade brasileira, para tanto,
analisando-se discursos que emergiram a partir das relações sociais, o que
possibilitou compreender os influxos que condicionam essas interações. A
Análise do Discurso é fundamental para tal empreitada, por possibilitar o olhar
acerca da exterioridade da língua. Investigam-se, assim, as raízes de cada
discurso, as raízes das interações no contexto sócio-histórico, ideológico.
Pôde-se perceber, finda a análise, que as
estruturas temerárias que tentam se impor sobre a sociedade brasileira - em sua
parcela mais pobre - a cada dia se mostram mais evidentes e visam abarcar todas
as instituições e manifestações culturais presentes na sociedade. É notável, diante
do que fora exposto neste artigo, que os processos de elitização dos antigos
estádios de futebol brasileiro e da pedagogização dos torcedores que frequentam
esses espaços estão diretamente relacionados aos interesses do neoliberalismo,
como das grandes empreiteiras responsáveis pelas construções e, em muitos casos,
concessionárias das arenas públicas, explorando-as financeiramente, bem como
das grandes mídias que detêm direitos de transmissão das partidas, estas cada
vez mais valiosas em um contexto de afastamento do torcedor dos estádios.
Assim, os discursos analisados demarcam espaço
de contrariedade às explorações do capital, percebe-se o distanciamento e o
confronto frente às investidas do mercado capitalista sobre o futebol. É
inegável a relação existente entre o futebol moderno, desde seu surgimento, com
as elites, no entanto é preciso destacar - e este foi um dos pontos deste artigo - a importância da mobilização dos
torcedores, nas arquibancadas dos estádios ou nas redes sociais, contra as
faces do futebol moderno.
Por fim, reitera-se a relevância da AD para a
investigação aqui realizada, espera-se a cada vez mais abrangente politização
dos torcedores brasileiros, bem como de todos os indivíduos oprimidos neste
país, para que seja possível romper-se definitivamente o silêncio frente às
relações exploratórias, que têm demonstrado forte sobrepujança.
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[1] Saussure definiu a língua
como sendo um sistema próprio, não comportando, portanto, influxos exteriores a
este. A fala se caracteriza como a realização desse sistema, fechada aos
fatores externos ao dizer.
[2] Há, na AD, diferentes definições à memória
discursiva. ORLANDI, 2001, determina a memória discursiva como os discursos
outros, resgatados, que significam junto a um novo dizer, ou seja, um
reservatório de ditos e significações anteriores. Utilizou-se, como
embasamento, o conceito defendido por INDURSKY, 2011, p.87: “A memória
discursiva é regionalizada,
circunscrita ao que pode ser dito em uma FD”.
[3] Entendido aqui como os jogos
praticados anteriormente às regulamentações implementadas pelos ingleses.
[4] A saber foram
transformados em arenas para a copa do mundo os seguintes estádios: Maracanã
(RJ); Mineirão (MG); Fonte Nova (BA); Machadão (RN), renomeado como Arena das
Dunas; Beira-Rio (RS); Arena da Baixada (PR); Mané Garrincha (DF) e Castelão
(CE). Foram construídas as arenas: Itaquera (SP); Amazônia (AM); Pernambuco
(PE) e Pantanal (MT).
[5] Para maior conhecimento
sobre as punições delegadas às torcidas e clubes são indicadas as reportagens
do site globoesporte.com sobre a punição ao Corinthians após uso de
sinalizadores por sua torcida: https://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/uso-de-sinalizadores-faz-corinthians-ser-punido-com-fechamento-de-setor-da-arena.ghtml e a respeito da proibição
de seis meses, em 2013, para a entrada de torcedores organizados do Clube Atlético Paranaense em estádios
brasileiros após briga generalizada em jogo contra o Vasco em que não houve
policiamento: http://globoesporte.globo.com/pr/futebol/times/atletico-pr/noticia/2013/12/torcida-organizada-do-atletico-pr-e-banida-dos-estadios-por-seis-meses.html . Salienta-se não ser
foco deste estudo a análise dos discursos difundidos na mídia sobre as punições
e comportamentos dos torcedores.