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Mariana de Paula Reis Guimarães

Bacharela em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário UNA (2009). Mestre em Genética pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2012). Doutora em Genética pela UFMG (2015). Pós-doutora do Programa de Pós-Graduação em Genética (UFMG) (2015-2018) – mapreis@gmail.com

 

Mônica Bucciarelli Rodriguez

Doutora em Bioquímica pela Universidade de São Paulo (1991). Pós-doutora pelo Roche Institute of Molecular Biology em New Jersey (EUA) (1991-1994). Professora do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG. - monica-bucciarelli@hotmail.com

 


Resumo: O biofilme se forma quando microrganismos se aderem a uma superfície em contato com meio aquoso e secretam uma matriz extracelular. O processo de formação do biofilme se inicia com a adesão dos colonizadores primários que se multiplicam e formam uma monocamada. A partir daí estes microrganismos começam a secretar a matriz formada por exopolissacarídeos, seguido da adesão de colonizadores secundários que formam co-agregados com outras espécies contidas no biofilme até se tornar maduro. Cerca de 90% da massa dos biofilmes é proveniente de sua matriz, que confere propriedades emergentes a esta estrutura quando comparadas às células planctônicas (forma livre). Dentre elas estão a manutenção de condições constantes e favoráveis para sua sobrevivência e a transferência de DNA contendo genes que podem conferir vantagens adaptativas em um ambiente desfavorável para determinadas espécies que o compõem. Nas últimas décadas, principalmente, um grande número de publicações sobre os mecanismos de formação dos biofilmes e a fisiologia dos microrganismos que vivem nesta comunidade tem sido um reflexo de sua importância ecológica para diferentes interfaces: saúde, meio ambiente e biotecnologia. A compreensão destes mecanismos poderá favorecer estudos envolvendo o tratamento de alguns tipos de infecções microbianas, seu uso em biorreatores para o tratamento de efluentes, ou até mesmo sua remoção em situações de bioincrustação industrial, dentre outras possibilidades.  

Palavras-chave: Biofilme. Bioincrustação. Infecção. Biotecnologia.

            Biofilmes são estruturas complexas formadas pela comunidade microbiana, contendo alta densidade celular (108 - 1011 células g–1 peso úmido) (MORGAN-SASTUME et al., 2008,  BALZER et al., 2010). Nesta resenha serão apresentadas as etapas de sua formação, as características que contribuem para seu sucesso em diversos ambientes e sua importância para os ecossistemas e para a biotecnologia.

 

O metabolismo e as estratégias ecológicas da comunidade microbiana

As bactérias e as arqueias são microrganismos ubíquos com surpreendente versatilidade metabólica, ou seja, obtém energia e nutrientes a partir de diferentes fontes, podendo ser aeróbios (crescimento em ambiente com presença de oxigênio), anaeróbios (crescimento em ambiente isento de oxigênio, de forma que suas funções metabólicas vitais são realizadas utilizando-se sulfatos, carbonatos e nitratos), quimiotróficos (dependem de compostos químicos para obtenção de energia), fototróficos (dependem de luz para obtenção de energia), heterotróficos (utilizam compostos orgânicos como fonte de carbono) e autotróficos (utilizam CO2 como única fonte de carbono) (MADIGAN et al., 2010).

Estas diferentes estratégias metabólicas foram desenvolvidas ao longo dos aproximados 3,6 bilhões de anos, os quais estes microrganismos habitam o nosso planeta, desempenhando um papel essencial no ciclo de vários elementos, incluindo particularmente o carbono, enxofre, nitrogênio e ferro. Nos diferentes ecossistemas, membros da comunidade microbiana interagem entre si seja por cooperação, diminuição ou aumento das atividades de outros microrganismos, vivenciando frequentemente situações extremas de escassez de recursos para sua sobrevivência. Assim, somente as espécies mais adaptadas àquelas condições compõem densas populações em um determinado nicho (HUGENHOLTZ et al., 1998, XU, 2006, MADIGAN et al., 2010).

As superfícies são importantes habitats microbianos por pelo menos dois motivos: primeiro, facilitam a adsorção de nutrientes, tornando-os mais disponíveis do que quando estão em suspensão. Em segundo, a adesão das bactérias às superfícies promove uma elevada atividade microbiana nestes habitats (MADIGAN et al., 2010).

Biofilme: formação e composição

A comunidade microbiana pode se organizar estruturalmente como um biofilme, que ganhou grande visibilidade nas comunidades científica, tecnológica e médica a partir das primeiras décadas do século XX (BEZERRA et al., 2009) e que se intensificou nas últimas duas décadas (Fig. 1). Ele ocorre quando uma superfície em contato com meio aquoso, fica coberta por microrganismos aderidos envoltos numa matriz extracelular produzida por eles. Esta estrutura se forma nos seguintes estágios: (1) colonizadores primários realizam a adesão inicial à superfície, (2) formação da monocamada, na qual as células se dividem, formando microcolônias, e também secretam a matriz formada por exopolissacarídeos, (3) colonizadores secundários se aderem a esta monocamada, formando co-agregados com outras espécies contidas no biofilme e (4) formação do biofilme maduro. A adesão da célula à superfície, desencadeada pela síntese de um derivado do nucleotídeo guanosina trifosfato, induz a expressão de genes relacionados à formação dos biofilmes. Esses genes codificam proteínas que sintetizam moléculas de sinalização intercelular, iniciando a formação da matriz (RICKARD et al., 2003, MADIGAN et al., 2010, AZEVEDO & CERCA, 2012).

Figura 1


Fonte: Número de publicações na base de dados PubMed do National Center for Biotechnology Information (NCBI), ao longo dos anos. Cada gráfico é referente à busca pelas palavras-chaves em inglês, indicadas acima dele.

Cerca de 90% da massa, em peso seco, dos biofilmes é proveniente de sua matriz. Esta é composta de substâncias poliméricas extracelulares (EPS), que em sua maioria são secretadas pelos próprios microrganismos, ou então são resultantes dos restos celulares em decomposição, formando uma estrutura heterogênea e estratificada. Esta organização resulta em zonas com densidade populacional e de matriz variadas que influencia tanto na disponibilidade nutricional entre estes estratos, quanto na expressão genética diferenciada até mesmo em biofilme monoespecífico. Isto sugere a existência de microrganismos especialistas em uma determinada função que seja benéfica para a comunidade (biofilme multi-espécies) ou para a população (biofilme monoespecífico) (AZEVEDO & CERCA, 2012).

Os biofilmes são ubíquos na natureza e apresentam propriedades emergentes quando comparadas às células planctônicas (forma livre). Estas propriedades incluem a diversidade de habitats promovida por gradientes de nutrientes e populacionais, captura de recursos por sorção, retenção enzimática que fornece habilidades digestivas, interações sociais, e tolerância ou resistência à pressão por antibióticos (FLEMMING et al., 2016).

A importância da matriz do biofilme

Uma das principais funções da matriz é de assegurar a coesão da estrutura do biofilme, para que haja adesão e comunicação (Quorum sensing1) entre as células que o formam. Além desta, a matriz também é fundamental para adsorver compostos importantes para a manutenção do biofilme, como água e nutrientes; e também funciona como uma barreira física que os permitem resistir em situações de escassez de nutrientes, alterações de pH ou pressão por ação de antibióticos (ACKERMANN, 2015).

Com todas estas características é razoável inferir que é mais vantajoso para os microrganismos viverem aderidos a uma superfície do que planctônicos, já que os biofilmes apresentam condições constantes e favoráveis para sua sobrevivência em um determinado ambiente (AZEVEDO & CERCA, 2012, ACKERMANN, 2015). Ademais, apesar da taxa de crescimento dos microrganismos em biofilmes ser mais lenta do que a dos planctônicos, o metabolismo dos primeiros é mais eficiente, pois conseguem utilizar de uma forma mais extensiva todos os nutrientes existentes (AZEVEDO & CERCA, 2012).

 

1Quorum sensing é um mecanismo pelo qual as bactérias avaliam sua densidade populacional através do compartilhamento de pequenas moléculas específicas, denominadas autoindutores. Quando a concentração de autoindutor presente atinge níveis suficientes, genes específicos tem sua expressão ativada.

Devido à sua elevada densidade populacional, há um favorecimento de troca genética em biofilmes. Além disso, O DNA liberado através da lise celular para a matriz colabora para a diversidade genética dentre a comunidade microbiana, favorecendo sua adaptação a novos ambientes. Desta forma, estudos de metagenômica2 e metatranscriptômica3 com alvo em biofilmes estão sendo realizados no intuito de caracterizar a comunidade microbiana e conhecer os genes e funções relacionados com sua formação, como por exemplo: adesão inicial, agregação, maturação, evasão à resposta imune e Quorum sensing (AZEVEDO & CERCA, 2012).  

Na saúde, a formação de biofilmes nos dentes e vagina por microrganismos comensais impede a formação de biofilmes de bactérias patogênicas nesses locais. Em contrapartida estão as infecções causadas pela inserção de dispositivos médicos como cateteres ou próteses, em tecidos de pacientes imunocomprometidos ou com doença genética (Fibrose cística4). Na indústria, características dos biofilmes como persistência, interações simbióticas, associação a superfícies ou formação de grânulos, são muito úteis para a biorremediação e tratamento de águas residuais; ao passo que, na indústria de alimentos e tratamento de água esta forma de organização microbiana pode ser responsável pela deterioração e intoxicação alimentar (MADIGAN et al., 2010, AZEVEDO & CERCA, 2012).

Considerações finais

A difusão de recentes publicações sobre os mecanismos de formação dos biofilmes e a fisiologia dos microrganismos que vivem nesta comunidade é um reflexo da importância ecológica e também biotecnológica desta estrutura. Estudos com foco nas propriedades da matriz dos biofilmes são de grande relevância biotecnológica. Como exemplo, a investigação sobre o uso das moléculas EPS para a fabricação de diferentes biopolímeros está em ascensão. Além disso, a manipulação da produção

 2Metagenômica é a análise genômica das comunidades de microrganismos de um determinado ambiente por técnicas independentes de cultivo.

3Metatranscriptômica é a análise da genômica funcional (RNA mensageiro transformado em DNA codificante) das comunidades de microrganismos de um determinado ambiente por técnicas independentes de cultivo.

4A Fibrose Cística está frequentemente associada a um biofilme multi-espécies altamente coesivo que se forma nos pulmões, provocando os sintomas de pneumonia.

de EPS para a mitigação da bioincrustação é extremamente atrativa para as atividades navais uma vez que este problema reduz o desempenho da embarcação e aumenta as suas necessidades de combustível.

Os mecanismos de tolerância a antimicrobianos e de dormência em biofilmes são também de grande relevância já que, de maneira surpreendente, o fenótipo é perdido após a dispersão das células. Assim, a compreensão destes mecanismos teria implicações para o tratamento de infecções microbianas, para a desinfecção de dispositivos médicos e para uma melhor compreensão da ecologia microbiana.

 

REFERÊNCIAS

ACKERMANN, M. A functional perspective on phenotypic heterogeneity in microorganisms. Nature Reviews Microbiology.13(8):497, 2015.

AZEVEDO, N. F., CERCA, N. Biofilmes: Na Saúde, no Ambiente, na Indústria. 1 ed. Publindústria, 2012.

BEZERRA, T. F., DE MELO PÁDUA, F. G., OGAWA, A. I., GEBRIM, E. M., SALDIVA, P. H., VOEGELS, R. L. Biofilm in chronic sinusitis with nasal polyps: pilot study. Brazilian journal of otorhinolaryngology. 75(6):788-93, 2009.

FLEMMING, H. C., WINGENDER, J., SZEWZYK, U., STEINBERG, P., RICE, S. A., KJELLEBERG, S. Biofilms: an emergent form of bacterial life. Nature Reviews Microbiology. 14(9):563, 2016.

HUGENHOLTZ P., GOEBEL B.M. and PACE N.R. Impact of Culture-Independent studies on the emerging phylogenetic view of bacterial diversity. Journal of Bacteriology. 180:4765–4774, 1998.

MADIGAN M.T., MARTINKO J.M., DUNLAP P.V., CLARK D.P. Microbiologia de Brock. 12 ed. Artmed, 2010.

XU, J. Microbial ecology in the age of genomics and metagenomics: concepts, tools, and recent advances. Molecular Ecology. 15:1713–1731, 2006.

BALZER, M., WITT, N., FLEMMING, H.-C., WINGENDER, J. Accumulation of fecal indicator bacteria in river biofilms. Water Science and Technology. 61:1105–1111, 2010.

MORGAN-SASTUME, F., LARSEN, P., NIELSEN, J. L., NIELSEN, P. H. Characterization of the loosely attached fraction of activated sludge bacteria. Water Research. 42:843–854, 2008.

RICKARD AH, GILBERT P, HIGH NJ, KOLENBRANDER PE, HANDLEY PS. Bacterial coaggregation: an integral process in the development of multi-species biofilms. Trends in microbiology. 11(2):94-100, 2003.



Recebido em 23 de novembro de 2020
Publicado em 12 de fevereiro de 2021


Como citar este artigo (ABNT)

GUIMARÃES, Mariana de Paula Reis. RODRIGUEZ, Mônica Bucciarelli. O Biofilme Microbiano e seu Impacto na Saúde, na Indústria e no Meio Ambiente. Revista MultiAtual, v. 2, n. 2, 12 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.multiatual.com.br/2021/02/o-biofilme-microbiano-e-seu-impacto-na.html